As Rugas que a Vida me deu

As rugas, que a vida me deu, contam histórias do tempo que passa, de momentos vividos, de lutas travadas, de conquistas e de perdas, da impotência ou da garra, de noites mal dormidas, de conversas pela noite dentro, de lágrimas, mais sentidas do que escorridas, das gargalhadas imensas ou da paixão, que nasce selvagem dentro de mim, coagindo-me a amar a vida.
As rugas, que a vida me deu, nasceram precocemente, quando a maioria das minhas amigas ainda tinha uma pele lisa.
As rugas, que a vida me deu, olhei-as primeiro com desagrado e desconfiança, depois como memórias quentes de uma vida vivida, intensa e irreverentemente.
Teimosa ou persistente?
As rugas, que a vida me deu, são essência, paixão e tristeza vivida até ao limite, aquela tristeza que cura as mágoas, expurga fantasmas, lima as diferenças; aquela tristeza de onde nasce o perdão, a compaixão, a aceitação, o entendimento de nós próprios e dos outros, e que nos permite rir com as suas alegrias e chorar com as suas tristezas.

De tempos a tempos, África doí-me no coração. 
Nos meninos, estropiados, órfãos, perdidos, de uma Angola marcada por uma guerra fratricida, fabricada à medida dos interesses dos grandes "tubarões".
Nas vítimas do Idai, num Moçambique que não conheço, mas a que me encontro indelevelmente ligada.

Foto de African Soul


A África que conheci, por uns escassos 15 dias, e que se me entranhou na pele. 
A África de que recordo as paisagens, os cheiros, os sabores, as chuvadas repentinas, a terra vermelha ou o calor.
A África que me acolheu, num Natal e Passagem de Ano únicas, com calor.
A África, a subsariana, o lugar do planeta que se poderia confundir com o Paraíso, não fossem as baratas voadoras e as aranhas gigantes.
A África dos rostos escuros, iluminados por sorrisos radiantemente  brancos.
A África a que nunca mais regressei, mas que trago no coração.  
A África que a ganância humana, a intolerância, o fundamentalismo ou a sede de poder e o escasso acesso à educação, à cultura e à saúde, tantas vezes, tornam notícia, pelas piores razões.

Bairro da Jamaica

A África que veio até nós, que, em muitos casos e tristemente, por incúria, negligência, falta de meios, irresponsabilidade ou incapacidade de tantos, deu origem a Bairros da Jamaica, da Quinta do Mocho e outros que tais.  
Infelizmente, este e outros problemas bem graves, da nossa sociedade, são utilizados por muitos, sem que movam um dedo para os resolver, para deles retirarem dividendos políticos ou visibilidade social.

Eu - anos sessenta - século XX

De tempos a tempos, uma nostalgia imensa enche-me o coração, quando a futilidade, hipocrisia, ganância e maldade, do mundo, me atingem, dolorosamente, revelando gente centrada no seu umbigo, cheia de utopias, meias verdades, inverdades ou pós-verdades, fundamentalismos e radicalismos, sem um pingo de verdadeira compaixão ou empatia com os outros, mas que, numa arrogância sem limites, se arroga de infinitos direitos, esquecendo os deveres e omitindo ou desprezando as inevitáveis contingências e asperezas da vida; ou fazendo de conta que conhece as soluções, de rápida e fácil aplicação, para os grandes e graves problemas que afligem o mundo e a humanidade; ou, ainda, rearranjando a História, denegrindo-a ou enaltecendo-a, conforme lhe der mais jeito.
Essa nostalgia encontrou eco num texto de autor desconhecido,  recebido por email, que aqui partilho. 
Ele é a imagem de um Portugal mais duro, mais pobre, com escasso acesso à educação ou à saúde, mas também de um Portugal mais verdadeiro, onde a palavra de honra era uma garantia tão boa quanto um Contrato escrito, assinado e reconhecido por uma qualquer Conservatória.



Um TEXTO que tem mais LÁGRIMAS ... do que PALAVRAS !!!



Quando os meninos me pediam "papel macio pró cu e roupa boa prá gente"…

Um dos textos que mais me custou a escrever e por isso tem mais lágrimas do que palavras.
Estávamos ainda no século XX, no longínquo ano de 1968, quando a vida me deu oportunidade de cumprir um dos meus sonhos: ser professora. 
Dei comigo numa escola masculina, ali muito pertinho do rio Douro, na primeira freguesia de Penafiel, no lugar de Rio Mau.
Era tão longe, da minha rua do Bonfim, não podia vir para casa no final do dia, não tinha a minha gente, e eu era uma menina da cidade com algum mimo, muitas rosas na alma, e tinha apenas 18 anos.
Nada me fazia pensar que tanta esperança e tanta alegria me trariam tanta vida e tantas lágrimas.
Os meninos afinal eram homens com calos nas mãos, pés descalços e um pedaço de broa no bolso das calças remendadas.
As meninas eram mulheres de tranças feitas ao domingo de manhã antes da missa, de saias de cotim, braços cansados de dar colo aos irmãos mais novos, e de rodilha na cabeça para aguentar o peso dos alguidares de roupa para lavar no rio ou dos molhos de erva para alimentar o gado.
As mães eram mulheres sobretudo boas parideiras, gente que trabalhava de sol a sol e esperava a sorte de alguém levar uma das suas cachopas para a cidade, “servir” para casa de gente de posses.
Seria menos uma malga de caldo para encher e uns tostões que chegavam pelo correio, no final de cada mês.
Os homens eram mineiros no Pejão, traziam horas de sono por cumprir, serviam-se da mulher pela madrugada, mesmo que fosse no aido das vacas enquanto os filhos dormiam (quatro em cada enxerga), cultivavam as leiras que tinham ao redor da casa, ou perto do rio e nos dias de invernia, entre um jogo de sueca e duas malgas de vinho que na venda fiavam até receberem a féria, conseguiam dar ao seu dia mais que as 24 horas que realmente ele tinha. 
Filhos, eram coisas de mães e quando corriam pró torto era o cinto das calças do pai que “inducava” … e a mãe também “provava da isca” para não dizer amém com eles…
E os filhos faziam-se gente.
E era uma festa quando começavam a ler as letras gordas dum velho pedaço de jornal pendurado no prego da cagadeira da casa…o menino já lia.. ai que ele é tão fino… se deus quiser, vai ser um homem e ter uma profissão!
Ai como a escola e a professora eram coisas tão importantes!
A escola que ia até aos mais remotos lugares, ao encontro das crianças que afinal até nem tinham nascido crianças…eram apenas mais braços para trabalhar, mais futuro para os pais em fim de vida, mais gente para desbravar os socalcos do Douro, mais vozes para cantar em tempo de colheitas.
E os meninos ensinaram-me a ser gente, a lutar por eles, a amanhar a lampreia, a grelhar o sável nas pedras do rio aquecidas pelas brasas, a rir de pequenas coisas, a sonhar com um país diferente, a saber que ler e escrever e pensar não é coisa para ricos mas para todos, para todos.
E por lá vivi e cresci durante três anos e por lá fiz amigos e por lá semeei algumas flores que trazia na alma inquieta de jovem que julgava conseguir fazer um mundo menos desigual.
E foi o padre António Augusto Vasconcelos, de Rio Mau, Sebolido, Penafiel, que me foi casar ao mosteiro de Leça do Balio no ano de 1971 e aí me entregou um envelope com mil oitocentos e três escudos (o meu ordenado mensal) como prenda de casamento conseguida entre todos os meus alunos mais as colegas da escola mais as senhoras da Casa do Outeiro. E foi na igreja de Sebolido que batizou o meu filho, no dia 1 de janeiro de 1973.
E é deste povo que tenho saudades. O povo que lutou sem armas, que voou sem asas, que escreveu páginas de Portugal sem saber as letras do seu próprio nome.
Hoje, o povo navega na internet, sabe a marca e os preços dos carros topo de gama, sabe os nomes de quem nos saqueia a vida e suga o sangue, mas é neles que vai votando enquanto continua à espera de um milagre de Fátima, duns trocos que os velhos guardaram, do dia das eleições para ir passear e comer fora, de saber se o jogador de futebol se zangou com a gaja que tinha comprado com os seus milhões, e é claro de ver um filmezito escaldante para aquecer a sua relação que estava há tempos no congelador.
As escolas fecharam-se, os professores foram quase todos trocados por gente que vende aulas aqui, ali e acolá, os papás são todos doutores da mula russa e sabem todas as técnicas de educação mas deseducam os seus génios, os pequenos /grandes ditadores que até são seus filhinhos e o país tornou-se um fabuloso manicómio onde os finórios são felizes e os burros comem palha e esperam pelo dia do abate.

Sabem que mais?!
Ainda vejo as letras enormes escritas no quadro preto da escola masculina, ao final da tarde de sábado, por moços de doze e treze anos com estes dois pedidos que me faziam: “Professora vá devagar que a estrada é ruim, e não se esqueça de trazer na segunda-feira, papel macio pró cu e roupa boa dos seus sobrinhos prá gente”.
Esta gente foi a gente com quem me fiz gente.
Hoje, não há gente… é tudo transgénico .
O povo adormeceu à sombra do muro da eira que construiu mas os senhores do mundo, estão acordadinhos e atentos, escarrapachados nos seus solários “badalhocamente” ricos e extraordinariamente felizes porque inventaram máquinas e reinventaram novos escravos.
Dizem que já estamos no século XXI...”
Autor desconhecido




LÉXICO
(para os mais jovens que nunca viveram, viram, ou ouviram falar destas coisas)



Aido - curral (onde dormem e/ou guardam os animais)


Cotim - tecido forte de algodão, semelhante à ganga, mas mais rústico

Eira - espaço plano com um chão duro, de dimensões variáveis, onde os cereais eram malhados e peneirados, depois de colhidos, com vista a separar a palha e outros detritos dos grãos de cereais.

Enxerga - cama humilde, com uma espécie de colchão de palha, que todos os dias era necessário remexer, para ficar mais uniforme e menos duro

Féria - salário semanal ou quinzenal com que eram pagos os trabalhadores agrícolas, mineiros e outros trabalhadores não qualificados

Fiado - os donos da taberna ou qualquer loja não recebiam o pagamento pelos bens vendidos na altura, mas apenas quando os pais de família recebiam a féria

Malga - tigela ou prato fundo onde se comia o caldo de vegetais, com um bocadinho de toucinho, para dar gosto, as papas de milho ou as "sopas de cavalo cansado".
Grande parte das refeições principais, das gentes mais pobres era constituída por estes caldos. Cada elemento da família tinha a sua própria malga. Os serviços de jantar não faziam parte dos bens que estas famílias possuíam. Só de pessoas com posses, ou seja, que se encontravam em escalões sociais e económicos mais elevados

Leiras - Sulco na terra para se deitar a semente - faixa de terreno cultivado

(1.803$00) mil oitocentos e três escudos (salário mensal de professor primário - ensino básico) - 9,00€

Rodilha - Roda de tecido torcido que se põe na cabeça para apoio de fardos, bilhas para transportar água, etc.

Serviam-se das mulheres - Tinham relações sexuais

"Servir" - trabalhar como empregada doméstica interna em casa de alguém (parte ou a totalidade dos salários das raparigas que iam "servir" era enviado para casa, para ajudar os pais.

Venda - Espécie de taberna onde também se vendiam mercearias e, por vezes, servia  como Posto dos Correios.

Freguesia de Rio Mau



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