Vida, Solidão e Saudade

A chuva fustigava a vidraça com violência. Maria observava as árvores vergadas pelo vento e as poucas pessoas que, apressadamente, passavam na rua, tentando proteger-se do vento e da chuva, lutando para dominar os guarda-chuvas que teimavam em querer voar.
Maria adivinhava, mais do que via, o mar de vagas alterosas, cinzento como chumbo. Aquele mesmo mar que, há mais de cinquenta anos, observava daquela janela.
Lembrava-se, como se fosse hoje, das palavras do seu Zé. Ficamos com esta casa, Maria, daqui vais sempre poder ver e ouvir o mar de que tanto gostas.
O seu Zé partira há muito e a solidão pesava-lhe, agora, mais do que nunca. Não que estivesse abandonada. Os filhos passavam com regularidade lá em casa e ao fim-de-semana, quase sempre, vinham buscá-la para almoçar.
Gostava de estar com eles, com os netos e os bisnetos, mas as forças faltavam-lhe cada vez mais, fazendo-a sentir-se inútil, sem préstimo para coisa nenhuma.
Já era tarde, as pernas doíam-lhe, empurrou o seu cadeirão preferido para perto da janela e sentou-se olhando o mar, o seu mais constante e fiel companheiro de todos os momentos. Não tinha sono e ninguém esperava por ela na cama, para lhe aquecer os pés.
Por vezes, após algumas noites insones, acordava assustada, com o coração em alvoroço, pensando que estava muito atrasada para fazer o almoço. Depois, caía nela e acomodava-se melhor na cama. Não precisava levantar-se, ninguém esperava por ela, ninguém iria reclamar por o almoço estar atrasado.
Luísa, a filha mais velha, já tinha tentado convencê-la, por diversas vezes, a ir para o centro de dia. Seria bom para ela, porque, pelo menos durante o dia, estava acompanhada, tinha com quem conversar, para além de que lá faziam diversas actividades, com as quais se podia distrair, argumentava Luísa ao ver a mãe reticente. Mas, Maria não se convencia, preferia estar ali, na sua casa, onde podia fazer o que bem entendia, sem ter ninguém a apoquentá-la, ruminando nas suas recordações
Anoiteceu, Maria pôs a manta sobre as pernas e, sentindo-se aconchegada, voltou às suas memórias
Tivera uma boa vida. Nem tudo tinham sido rosas, mas o saldo final era muito positivo. Recordava com saudade o dia em que conhecera o seu Zé, o dia do casamento, o nascimento dos filhos, netos e bisnetos.
As ocasionais dificuldades financeiras, a grave doença do Miguel, o filho do meio, aquela escorregadela do seu Zé com a sua maior amiga, a morte dos pais e outros momentos difíceis que passara na vida, tudo isso lhe parecia distante e pouco importante. As boas recordações tinham, agora, um peso muito maior e, essas sim, faziam-na viver outra vez.
No entanto, pensou, talvez a filha tivesse razão. Talvez não fosse bom para ela estar tanto tempo sozinha, só com as suas recordações, sem ninguém com quem conversar, sem nada para fazer. Mas custava-lhe tanto pensar que iria estar dias inteiros sem olhar o seu mar, sem o seu silêncio, sem o som das vagas, sem as suas recordações, sem a saudade do seu Zé.
Na sua velha casa tudo lhe era familiar, os cheiros, os sons, a mancha de humidade na cozinha, o seu sofá que, com os anos, tomara a forma do seu corpo. Ali sentia-se protegida. Era ali que esperava que o seu Zé a fosse buscar, quando chegasse a hora. E como tardava essa hora.
Como podia ela sair dali? Como a encontraria o seu Zé, se ela não estivesse em casa?
Luísa dizia-lhe, muitas vezes, para, pelo menos, ligar a televisão durante o dia, pois havia muitos programas interessantes que a podiam distrair. Mas, ela aborrecia-se. Toda aquela gente falava demais. Tantas histórias, tantas coisas que não lhe diziam respeito. Preferia perder-se nas suas recordações, que via como um filme muitas vezes repetido, mas no qual descobria sempre um elemento novo, um pormenor em que nunca tinha pensado.
Acomodou-se melhor no sofá, puxou a manta até lhe tapar o pescoço, a chuva parara, mas sentia frio, talvez tivesse passado pelo sono.
O céu ficou mais claro, dentro em breve iria nascer o sol. O mar parecia agora mais calmo e, aos poucos, ia perdendo a cor de chumbo. A face engelhada de Maria contraiu-se num sorriso, aquele era o seu mar, forte, seguro, por vezes, agreste e temperamental, outras, calmo e límpido, outras ainda, revolto atirando-se violentamente contra a areia em nuvens de espuma branca. O mar era um pouco como a própria vida e Maria não se cansava de olhá-lo.



Um tímido raio de sol entrou pela vidraça, caminhou sobre a manta e deteve-se suavemente, por um momento, no rosto de Maria. Ela não se moveu, o seu rosto encontrava-se calmo, repousado, com um ligeiro sorriso que lhe adoçava e rejuvenescia as feições e os seus olhos azuis fixavam, sem ver, o seu companheiro de uma vida.

              

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