Revelações ou a Procura do Divino que há em Nós


I
O menino caminhava descalço sobre o verde. Corria. Logo parava sorridente ou deslumbrado. Aspirava um odor, envolvia-se na cor, deixava-se embriagar pelo azul. Depois dormia placidamente ou apenas dormitava. Esfregava os olhos de mansinho, colhia um aroma e saciava a fome. Não tinha medo, porque não o conhecia. Não sentia dor, porque nunca a encontrara. Não falava, porque nada havia a dizer, nem a quem. Não gritava, porque queria quedar-se silencioso, sem ensombrar o brilho da cor.
O menino não sabia que era gente. Não conhecia o luar, nem a chuva, nem o sol a pino do meio-dia. Nunca se agitava. As suas compulsões marcavam os seus passos inocentes e incautos. Nada havia a perder, nem a ganhar. Não conhecia argumentos, palavras, amores, ódios ou paixões. A sua vida era uma folha plana e alva, sem uma ruga sequer.
O menino não era feliz, pois não inventara a felicidade. Nem tão pouco infeliz, pois, não gerara o sofrimento. O menino não sabia se caminhava, pois, não conhecia os caminhos. Não rezava, pois não sabia que deveria crer. 
O menino não crescia, pois tudo estava ao seu alcance. O menino não ansiava, pois no seu enorme mundo não existiam desejos.
O menino curvou-se, os seus lábios contraíram-se num beicinho próprio da infelicidade pueril. Do seu pequenino e delicado pé escorria uma única e gorda lágrima vermelha. O menino aprendeu então o que era a dor e disse: Ai!

II

Inquieta, a noite criava em todos os seres a dimensão do absoluto, do imenso, do incognoscível. Ela, que conhecia as sombras e os contornos de todas as coisas, estremecia palidamente ao defrontar-se com a inevitabilidade do seu terminus fatal. Ela era senhora de grande sabedoria e conhecimento, mas nada podia fazer contra as forças omnipotentes que a governavam. Ela, forte, serena e segura, temia o encontro com o archote imenso que a antagonizava.
Os focos de luz distantes faziam-na amuar, mas, logo em seguida, resignada à sua pequenez, engrandecia-se e atormentava todos aqueles sobre os quais detinha a dominação.
O seu encanto e suavidade obrigava-os a sonhar e a amar. A sua força e imensidão levava-os a destruir, a aterrorizar, a odiar. O seu poder e convicção transportava-os para um mundo de terrores e temores, de tristezas e agonias.
Mas ela, a noite, não sentia pena, nem gozo, nem compaixão, nem amor, nem ódio. Não se interrogava sobre o certo e o errado, o grotesco e o romântico, o alegre e o triste. Para ela, a noite, tudo era apenas natural. Tudo começava e terminava ali, naquele imenso e fascinante mar de forças incomensuráveis que se digladiavam ininterruptamente, na imutabilidade dos tempos.
A sua única pena era não poder reinar para sempre. O seu recôndito desejo era transformar-se na própria e majestosa luz. E, de facto, por vezes, tal desejo era-lhe concedido e, sem que isso dependesse da sua vontade, imprevisivelmente, tinha a rara faculdade de, embora negra e escura, poder verdadeiramente iluminar.

III
Estranho mistério. Divina vontade das vontades supremas, das forças verdadeiras, únicas, tão reais e fortes que se tornam, para todos, ocultas. Apenas se manifestam em significativos momentos, quando nos encontramos, ainda, naquele torpor entre o sono leve e o acordar. É nesses momentos que reconhecemos o verdadeiro, o imenso que nos rodeia. Mas, desafortunadamente, ao despertar resta-nos apenas uma vaga, difusa lembrança de que, por instantes, tocámos a fonte de toda a verdade. A frustração invade-nos, de forma intensa e nefasta, e são em vão todos os esforços para regressamos ao local profundo e desconhecido que há em nós.
O plagiador vigor lunar estende-se aos humanos com indulgência, como uma mão benigna e imensa. Estes, por vezes, ludibriados pelo seu brilho, encaminham-se directamente para o abismo. Pobres, incautos seres, que, enclausurados na sua tacanha dimensão, pensam ver, no seu jogo de sombras e luzes, o atalho que os conduzirá à felicidade, para serem, completa e tristemente, desenganados, logo aos primeiros raios da aurora.
A irrealidade devastadora apodera-se dos seres que, preguiçosa e inevitavelmente, labutam para alcançarem nenhures. Tremem-lhes as mãos e as pernas, batem-lhes desenfreadamente os corações, ansiosos praticam rituais variados, na tentativa de apaziguarem deuses e demónios, de que não têm memória, mas a quem, estranhamente, reconhecem existência. Cada um utiliza o artifício que julga ser o mais apropriado, apostando nas suas mais evidentes e fortes “virtudes”. Por fim, quando já vergados sobre si próprios, assumem a sua pequenez e impotência, regurgitam ódios, rancores e revoltas, num último e denodado esforço para atingirem a força indiferente, cruel e poderosa que os domina, aterroriza e fascina.
A impiedosa síncope do seu ”alter ego” transforma a massa humana em algo profundamente informe e promíscuo. Aquela amalgama sofre convulsivos movimentos aleatórios, bruscos e descontínuos que, vistos à distância, parecem poder, a todo o momento, fazê-la eclodir. Mas, tudo não passa de uma mera e fugaz ilusão, pois que a sua força e perseverança não tem a constância vera, extraordinária e imensa dos espíritos e mentes puras.

IV
Procura, no mais obscuro e remoto recanto do teu debilitado e confuso “eu”, a verdade e a pureza do derradeiro e magnifico encantamento, pois que ele, somente ele, te pode reconduzir ao trilho dos inequívocos e únicos axiomas supremos, dos quais sempre foste guardião e detentor universal.
Deixo que ondas frias e salgadas purifiquem o meu corpo exangue e pútrido. Este mar imenso, glorioso, eterno e imaculado é a relação mais próxima que nos é permitida com o absoluto. Fricciono este corpo estéril e frívolo, até que o líquido quente e vermelho o cubra de vergonha sentida.  Rebolo-me na areia branca e virgem, até que nada de mim seja visível, para além dos olhos que fixam sempre o infindo céu azul.  
A mesquinhez e mortalidade do invólucro, que me domina e limita, inspira-me a mais profunda náusea. O desejo ardente de ascender à condição divina esbarra com a eternal ignávia e tibieza humana.  
As mortificações, agonias, padecimentos, ódios e dores, as alegrias, enlevações, amores, devaneios e paixões nada têm de divino ou esplêndido. São apenas meros incidentes casuais, utilizados como vãs e orgulhosas glórias, para enaltecimento dos insignificantes e tristes mortais.
Alcançar o profundo, o eterno, o indizível, o único, o não arbitrário, o verdadeiro, o absoluto, o inimaginável está-nos vedado por invisíveis e intransponíveis diques de águas mansas, alvas, puras e cristalinas que a cegueira humana não consegue divisar.
Na sua imutável ordem celeste os planetas giram continuamente, gravitando em volto dos seus sóis. Aí reside a perfeição, o princípio e o fim de todas as coisas, a eternidade. Aí coabitam, também, todos os deuses e deusas jamais imaginados, nos mais ousados sonhos, dos seres por eles criados.
Que pérfido resguardo nos foi dado ter, que não nos permite nem mesmo ousar. Num emaranhado confuso de desejos e anseios, nobres ou vergonhosos, digladiamo-nos num tempo e espaço que se assemelha ao eterno, sem contudo alcançarmos mais nada além da nossa própria insignificância.
As trevas eternas. Nada se alcança, além do nada. Sombras vagas e confusas não existem, são apenas meros desejos ou projecções da nossa imaginação ávida. Tudo é breu.
Estremecemos num arrepio colossal, as nossas mais intimas esperanças, os mais profundos desejos, as nossas fés inabaláveis foram frustradas, aniquiladas. Os nossos espíritos incompletos, ignotos, não passam da continuidade perversa das nossas fétidas carnes. 
Pobres de nós. Morta a esperança, nada há a esperar.

V
O Velho fixa um ponto na escuridão, aguarda. Não se lhe adivinha o cansaço, ou a impaciência. A sua espera é calma e plácida, como se as suas certezas superassem toda e qualquer dúvida que a sua ansiedade pudesse gerar.
Então faz-se luz. Uma luz imensa, dolorosa, impenitente. Ele, o deus, caminha majestoso, ignorando a corja que o rodeia. Pleno da sua própria magnificência, agride com o seu esplendor todos os seus humildes fiéis. Nada pede, nada ordena, nada exige e nada oferece.
O Velho estremece, as narinas muita abertas agitam-se num frenesim, grossos pingos de um suor arcaico escorrem-lhe pelas faces, contornam-lhe as asas do nariz e caem-lhe salgados e amargos nos lábios entreabertos. Num anelo, eleva os braços, dobra os joelhos, prostrando-se por terra, num rogo mudo de agradecimento e absolvição, aguardando que a divindade lhe conceda, por um instante apenas, um olhar que o dignifique.
Pobre Velho, nem toda a sabedoria, maquiavelismo, astúcia e maldade que os anos e a vida lhe tinham dado, o haviam preparado para o defraudamento final. O Velho cai por terra, sem um sopro de vida, morto, mas o seu espírito não se eleva, não ascende das trevas para a luz beatifica, da terra para o céu. O espírito expira ali, sem mais, e apodrece rapidamente, acompanhando a putrefacção do corpo, gasto e seco, do Velho que aguardara a vida eterna.        

VI
 
O Espírito cansado avançava lentamente, envolto numa névoa benigna mas inerte. O Tempo das magníficas auras adormecera há muito. O Mito, por tantos forjado, perdera o grácil vigor.  A sua força cessara, porque os espíritos solitários, cansados de uma espera insana, se deixaram morrer lentamente, incapazes de lutar contra a rudeza de um mundo implacável.
O Espírito procurava ansiosamente algum frescor, talvez uma cor forte ou até mesmo um ser ímpio a quem converter, mas nada restava. Perto dele, mas invisíveis para si, vagueavam outros espíritos igualmente ansiosos, igualmente perdidos. Não que eles não soubessem que, se unissem os seus creres, a atonia se converteria em Luz, mas estava-lhes vedada essa visão.  Porque a sua fé se extinguira? Porque o seu querer fenecera? Porque o Mal vencera? Porque a vida findara? Não! Na verdade, a autêntica, a única, a derradeira razão prendia-se apenas com um cegueira auto-infligida, por no seu tanto querer encontrar o caminho e a luz, se haverem perdido na procura, cansados da imensa busca, de incontáveis desilusões, de infindáveis crueldades e ignávias.
Agora, o Espírito arrastava-se, talvez com a ténue esperança de ainda encontrar um sulco em que se pudesse apoiar. Mas nada restava além de um imenso nada. Era como caminhar numa gigantesca bruma interminável e intemporal.
Patética era a realidade. Patético o caminho não vislumbrado. Patético o futuro sem amanhã.
Contudo o Espírito continuava, teimosamente, a procurar um trilho que o conduzisse a um outro alvorecer.
Quem sabe, talvez que a sua tenacidade, a sua vontade férrea, a sua demanda insana o conduzissem a um qualquer outro trilho que tivesse escapado à imensa devassa cósmica.

VII
O Menino olhava o mundo com os enormes e prudentes olhos de Velho.  Tudo lhe era estranho e tudo lhe era familiar. A sua sabedoria ancestral dava uma dimensão diferente às suas dúvidas.
O Menino Velho procurava incansavelmente a beleza remota do Paraíso perdido. Mas só, de quando em quando e de relance, conseguia entrever diminutos detalhes que, dir-se-ia, poderiam ser lembranças perdidas do Jardim dos Milagres.
O Menino Velho caminhava com lentidão, alheado e consciente do mundo agreste e impiedoso em sua volta. O corpo vergado e hirto, os pés arrastando-se cansados, era a derradeira imagem da impotência humana, ao confrontar-se com o impenetrável.
Que estranhos poderes! Que obscuros deuses! Que iníqua raça!
Os pensamentos corriam velozes no cérebro ancião, daquele corpo vigoroso e jovem. O mundo pesava-lhe, a dor contorcia-o, a incompreensão esmagava-o.  
Que devia esperar? Como devia viver? Porque não podia morrer, para finalmente descansar? Mas morria... Morria de mil mortes, em cada segundo eterno que passava. Morria torturado, aniquilado, vencido.  
Num qualquer outro lugar aprendera a palavra esperança. Mas, que devia esperar? Seria aquela a espera eterna do nada? Ou seria que tinha que crer? Tinha que acreditar com todas as forças do seu corpo dilacerado, com toda a intensidade do seu espírito doente e cansado.
O Lago límpido e claro brilhava com os fulgores da magna estrela. Peixes prateados saltavam repletos de vida, criando tormentos circulares na sua superfície calma, que rapidamente se desfaziam em nada.
A vegetação sussurrava de mansinho ao sabor da aragem cálida. Ocasionais trinados ecoavam no ar, denunciando a presença dos seus autores.
O Menino Velho sentou-se na erva fresca e verde. Inspirou profundamente e abraçou a paz que o rodeava. O seu delicado nariz farejava a vida. Os seus olhos gulosos lambiam as cores. Os ouvidos atentos devassavam os sons. O seu corpo acariciava a terra. E o seu espírito guardava, secretamente, todo o esplendor magnificente, numa estância remota e íntima.
O Menino Velho fechou os olhos cheios de cores, almejando que o Tempo parasse. Um arrepio percorreu-lhe o corpo. O grande astro adormecia agora, inexorável e lentamente.
Tomando consciência de que era necessário erguer-se e voltar a caminhar, o Menino Velho chorou. As lágrimas vivas, espessas e brilhantes caiam imparáveis dos seus olhos sábios e escorriam-lhes pelas faces frescas e infantis.
O fracasso envolvia-o como um manto pesado e sufocante. O Tempo persistia irresistivelmente na sua jornada. Afinal, tudo fora um logro. Também não era ali o Jardim dos Milagres.
A busca, interminável e árida, derrotava os últimos sopros de esperança e energia do Menino Velho.
Tomando a posição fetal, o Menino Velho, resolveu esperar que a Morte ou a Mão Divina o viessem redimir.

Chadai.. Chadai!  Pai, por que não me estendes a tua mão imensa? Estarás realmente vivo ó meu Deus? Oh Grande Jeová? Os gritos sofridos do Menino Velho faziam-se ouvir por toda a Terra.
Os pássaros calaram os seus trinados. Os rios extinguiram o seu constante borbulhar. O vento, incrédulo, parou de soprar. Todo o Mundo se converteu numa incomensurabilidade de silêncio e espanto, como se a morte, derradeira e última, o tivesse subitamente feito sucumbir. Mas, o Menino Velho, esse, continuava a gritar. No seu grito não havia medo, nem tão pouco ódio ou mesmo revolta. Nele existia só e apenas sofrimento e incompreensão.
Então, uma suave, quase inexistente, quase irreconhecível, brisa celestial afagou, delicadamente, as sinuosas ondas dos cabelos do Menino Velho.  Esta era a resposta. Esta era a chamada. Mas, só quem tivesse ouvidos a poderia ouvir. Só quem tivesse olhos a poderia ver. Só quem tivesse um espírito delicado e generoso a poderia sentir.
Então, as lágrimas secaram-se. Os gritos morreram. Os músculos relaxaram. E o peito do Menino Velho elevou-se numa inspiração profunda e calma.  Ele sabia....



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