FIM-DE-SEMANA ALUCINANTE

A vida é irónica e, como costumo afirmar, Deus tem um sentido de humor muito particular.
Sexta-feira chegou.  A partir das 18h já é  fim-de-semana. Contrariamente ao habitual, estou sozinha e posso fazer seja o que for que me apeteça. Ir ao cinema, varar a noite a ver filmes, beber um copo com uns amigos, ou qualquer outra coisa que me passe pela cabeça.
Mas, definitivamente, os anjos estão contra mim.  Amanheci febril, o relógio marcava uma hora próxima daquela em que deveria chegar ao trabalho, levantei-me de um salto e cambaleei, como se atingida pela lassidão da ressaca. Em equilíbrio precário fui até à cozinha e degustei um pequeno-almoço com sabor a papel. O banho libertou-me um pouco do torpor mas, os arrepios de frio, seguidos de suores repentinos, o nariz a fungar e os olhos lacrimejantes, eram sinais evidentes que não estava no meu melhor.
Enfim, lá fui trabalhar. O dia passou. Todos os meus planos para uma noite diferente não se mostravam fáceis de concretizar. Liguei à minha prima, a do gato Manelinho da Silva, atendeu-me rouca e a fungar, pior do que eu. Cinema? Nem pensar, talvez um cházinho quente e um pouco de conversa, mais nada. Estava cansada e só lhe apetecia deitar.
Fui buscá-la ao trabalho, comprámos, nas "tias", uma comida já pronta e lá jantámos entretidas a desfiar as nossas misérias, entre lágrimas e gargalhadas.
Eis que toca o telefone. Era a mãe dela, que foi recentemente operada. Estava aflita, a cicatriz estava inflamada, não sabia o que havia de fazer e recusava ir ao hospital.  Por fim desligaram. Ofereci-me para as levar ao Hospital, mas a Paula recusou, que iam no dia seguinte.
A minha Prima, com os nervos, foi logo acometida de taquicardia e de uma violenta dor de barriga, mas, quando regressou daquele lugar "sagrado", ideal para boas meditações, tinha mudado  de opinião e aceitou o meu oferecimento.
Lá partimos em direção ao Cacém, com o  prognóstico de uma noite bem passada na urgência do Amadora Sintra, o mais requisitado hospital da Região de Lisboa,  bastante afamado pelas longas horas de espera.
Mas, até que não correu mal e ao fim de uma hora estávamos despachadas. A prima Arlete estava agora mais descansada e voltámos ao Cacém, para a deixar no conforto do lar.
De regresso a Alcântara enfrentámos mais uma dificuldade, para estacionar só havia o lugar do deficiente, o da passadeira e em frente ao portão de uma oficina. Escolhemos o menos mau, mas ainda assim tivemos que andar a arrastar caixotes do lixo.
Três da manhã. Escrevo no blog as peripécias do dia. A minha Prima dorme, como uma justa, ao meu lado. De facto Deus  tem um sentido de humor muito peculiar. Nem copos, nem cinema, nem qualquer outra coisa que me tivesse passado pela cabeça. Mais uma vez, para não variar, aproveitei um fim-de-semana de liberdade numa bem passada noite hospitalar.
Este fim-de-semana fez-me recuar no tempo e recordar.
Quando os meus filhos eram pequenos, nas raras vezes em que decidíamos passear, ou fazer qualquer coisa de diferente ao fim-de-semana, de imediato, todos os maus agouros se apressavam em concretizar.  Normalmente, na noite que antecedia a partida, ou mesmo no primeiro dia de passeio, um deles, ou ambos, eram atacados por súbita doença. As suas vozes tornavam-se roucas, os rostos afogueavam-se,  tossiam poderosa e asperamente ou eram acometidos de uma simpática crise de falta de ar. E se, por inesperado descuido, estes factos não se verificassem, tomava-se o clima de humores e presenteava, sem timidez, de águas diluvianas, todo o fim-de-semana.
Mas, a minha coroa de glória alcancei-a no meu primeiro passeio como mulher livre, após 18 anos em cativeiro (casamento), tive a triste ideia de ir visitar a minha sobrinha, que, ao tempo, estudava em Vila Real de Trás-os-Montes.
Partimos de Lisboa pelas 10h, eu, os meus filhos, a minha irmã e o meu cunhado Quase chegados a Aveiras deu-se o primeiro sinal de alarme.  A minha filha, vermelha como um tomate, com a testa fervente, dormia, prostrada. Algumas horas depois, já em Vila Real, foi a vez do meu filho. 
Era simpático e requintado o restaurante que escolhemos para jantar. Preparada para o petisco, um delicioso (imagino eu) prato regional, ergui os talhares e, nesse momento, perante a estupefação geral, o meu filho despeja sobre a toalha, pratos e talheres, o conteúdo estomacal, o qual aromatizou o local e reduziu a sussurros, de puro constrangimento, todas as conversas, no restaurante repleto de clientela.
Então fomos em peregrinação do Hospital para o Posto de Saúde e deste, novamente, para o Hospital. A Adriana já se encontrava em franca recuperação, mas, o Vasco, esse abeirava-se da inconsciência.
A enfermaria das urgências tinha quatro camas e cadeiras especiais para acompanhantes. O meu filho dormia um sono profundo e distante. Na cama ao lado, uma menina, ligeiramente mais nova, talvez com uns seis anos, acompanha de um pai ansioso e perplexo, observava tudo com um olhar triste e desconfiado.
A noite afundou, a penumbra envolveu-nos. A médica veio fazer a ronda e detivemo-nos a conversar.  Duas horas se passaram. Ela falou-me da sua vida, da sua recente perda, da sua dor e revolta.   
Por fim caiu o silêncio. Apenas o som das respirações cadenciadas se fazia ouvir. O sono apoderava-se, agora, de mim, quando algo me desperta e me faz saltar. Um som bem conhecido, como um relógio de alarme.
A menina lutava com a falta de ar. Acerquei-me dela e mandei o pai ir chamar a enfermeira, A pouco e pouco, tudo foi voltando à normalidade. 
Nasceu o dia. O meu filho dormia o longo sono reparador. O pai da menina olhava-a impotente. Ela não queria comer. Explicou-me depois que era sempre assim e que era exatamente por causa disso que adoecia a cada passo.
Hospital de Vila Real
Disse-lhe para ir apanhar ar. Sentei-me ao lado da menina e fizemos um contrato: Ela comia uma bolacha, em atenção ao pai que estava tão preocupado, e ia começar a sentir-se melhor. A meias demos-lhe a bolacha. Pouco depois, vieram buscá-la para a levarem para uma enfermaria normal. Pedi-lhe então um abraço e, aquele rosto sério e desconfiado abriu-se num sorriso, os braços ergueram-se e demos um abraço, quente, terno e forte, perante o olhar estarrecido do pai.
A médica, na sua ronda final, veio despedir-se, falámos mais um pouco e dissemos adeus como duas amigas, de longa data, que se tivessem reencontrado num momento crucial.
Guardo uma extraordinária recordação da eficiência, cuidado e humanidade de todos  os que trabalhavam naquele hospital (Janeiro de 2000).
O Vasco, visivelmente recuperado, teve alta nesse dia.
E eu senti que, naquela noite de espanto, o meu lugar, aquele que o destino me reservou, era mesmo aquele hospital.
Mas, a repetição cansa e penso, seriamente, para a próxima enganar o destino.  Logo que chegue um novo fim-de-semana de liberdade, requisito um quarto de hospital, três balões de soro, duas sessões de fisioterapia, um banho de esponja, dado na cama e comida do local. Assim, para variar, troco as voltas ao destino e em vez de cuidar, vou ter quem cuide de mim. Deve ser uma experiência interessante, mais que não seja por ser diferente do habitual.

Comentários

  1. Mana, cada uma tem a sua mania, que nos faz ficar agarradas ao computador pela noite fora e andar com os olhos a arder durante o dia seguinte! Tu desabafas e contas histórias verdadeiras, "blogueando", eu escrevo histórias de ficção, ou, como nestes últimos serões, faço pastas de épocas da nossa vida, ou de viagens aqui e acolá, "scanneando" fotos dos meus queridos albuns e outras que por aí andam avulsas. Quanto ao fim de semana alucinante, lembro-me bem dele, embora nós tivéssemos limitado a nossa participação nessa noite memorável ao tempo de espera pelo diagnóstico, sentados dentro do carro, gozando da simpática temperatura de 2 graus abaixo de 0, ora à porta do Hospital, ora à do Centro de Saúde, ora, de novo, à do Hospital! Felizmente que, no dia seguinte, os doentes estavam recuperados e pudemos transportar todos de volta ao lar e a temperaturas mais amenas! Mas, já agora, convém lembrar que, desde que os teus filhos cresceram, já conseguimos fazer umas belas passeatas, sem, graças a Deus, precisarmos de visitar nenhum Hospital! Beijos.

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