O Rapaz, a Estrela e a Canção do Mar



O Rapaz caminhava pela praia pontapeando tudo o que se lhe atravessava no caminho.  Deixara, há pouco, os amigos com quem se entretivera, durante algumas horas, conversando e fazendo piadas de tudo e de nada, manifestando uma boa-disposição que não correspondia, na verdade, àquilo que sentia.

 
Agora, que se encontrava sozinho, podia dar largas à sua frustração, aos seus medos e à incompreensão que sentia face ao mundo e a si próprio.
Preparava-se para, novamente, pregar um valente pontapé, em mais um minúsculo obstáculo, quando algo o deteve.  

Olhou, demoradamente, a pequena estrela do mar. Era uma estrela do mar, de cor alaranjada, igual a tantas outras.  Mas algo nela era diferente, faltava-lhe um dos braços, contudo, parecia estar viva. O Rapaz baixou-se, tocou-lhe e ela retraiu-se. Então, ele tirou a mochila das costas e procurou algo em que pudesse colocar a estrela. Encontrou um saco de plástico, encheu-o de água salgada e pôs a estrela lá dentro.
Deitou alguns litros de água salgada  no velho aquário, há muito sem uso, e colocou a estrela lá dentro. Durante muito tempo, deteve-se a observá-la. Sentia uma estranha identificação com a Estrela.
Estrela estava cansada e sentia-se doente, tinha que concentrar toda a sua energia na tentativa de regenerar o seu braço. Estava triste, magoada. Aqueles que amava tinham-na desiludido. E, agora, aquele rapaz tinha-a retirado  do seu elemento, aprisionara-a numa caixa de vidro e observava-a com um olhar estranho.
Passaram os dias. Estrela tinha saudades do mar e dos seus, mas começara a amar aquele rapaz que variava constantemente de comportamento, conforme estivesse sozinho ou acompanhado. Estrela pressentia nele uma grande dor, mas o rapaz apenas a observava, não falava com ela. Mantinha-a cativa, expectante da sua chegada e da sua atenção.
Estrela tentava falar-lhe ao coração, mas o Rapaz mantinha-o surdo. A cada dia que passava, Estrela sentia que a saudade, do mar e dos seus, se afastava. 
Sentia-se confusa nos seus sentimentos. Como podia amar tanto o Rapaz? Ele mantinha-a prisioneira. Se ela se escondia por debaixo de uma alga ou de uma pedra, ele procurava-a, mas, logo em seguida, partia ou ignorava-a. Mas, enciumado, resguardava-a de olhares alheios. Não queria  que outros tivessem a sua atenção.

Estrela vivia agora num mar de sentimentos confusos. O seu coração doía. Tudo se confundia à sua volta. Lágrimas imensas encheram os seus olhos de estrela. E, ela já não sabia bem quem era. Seria uma estrela? Uma rapariga? O próprio mar? Ou, seria ela, agora, só e apenas, o coração confuso e dorido do Rapaz?
Então, Estrela começou a meditar. Recordou o passado, desde o seu nascimento, recordou a vida, as suas amizades, amores e sofrimentos e começou a entender...
Naquele dia, quando o rapaz chegou, ela envolveu-o num imenso Amor. Ele tentou rebelar-se, fechar o coração. Mas ela, teimosa e mais rápida, roubou-lhe a chave e abriu-lhe a porta do coração.
Então viu a sua dor e confusão. Viu os seus dias tristes de solidão. A sua revolta pela mãe que partira, deixando-o perdido, sem caminho ou direção. Viu o amigo morto, que ele tanto quisera salvar, mas que, impotente, tivera que deixar partir. Viu como nos seus amores se sentira sozinho, incompreendido e abandonado. Viu a sua revolta. Viu os seu medos. Viu a sua solidão.
Estrela deitou fora a porta do seu coração. Desprotegida, mas toda ela Amor e Coragem, mostrou ao Rapaz que  o Amor vale a pena, que a Vida sem Amor é apenas revolta e solidão.
Mostrou-lhe que, para se poder Viver, é preciso aprender a perdoar, aprender a lutar contra o medo de se magoar. Porque o sofrimento, que às vezes vem bem juntinho com o amor, só é mau se não nos permitirmos senti-lo, se não o olharmos como uma coisa natural e boa que nos fará crescer e entender o  nosso próprio coração e o dos outros. 
Porque, às vezes, as pessoas não sabem amar. Não fazem por mal, não têm intenção de magoar. Apenas, têm demasiados medos, revoltas e dores, que as mantêm prisioneiras e, por isso, magoam os outros e a si próprios. 
Mas, se nos permitirmos sofrer, Amar e Crescer, dar-se-á a Transformação, chegará o entendimento e, abrindo o coração, poderemos avançar, sonhar, Viver e Amar.
O Rapaz  oferecia resistência, não queria acreditar. Viver só valia a pena se não tivesse que se dedicar completamente, se fosse uma coisa superficial, pois, à sua volta, só via maldade, crueldade, indiferença e incompreensão.
Estrela inspirou profundamente, lentamente colocou o seu coração nas mãos do rapaz e disse-lhe: 
Sabes, nós não nos encontrámos por acaso. Ambos estávamos muito magoados, quase sem o saber. E precisávamos de refletir, sofrer, entender, para poder Crescer.  O nosso encontro deu-se por desígnio divino.
Vês todo o amor que há no meu coração? Vês aí o teu lugar? E vês quantos mais estão dentro dele? 
Mas, nenhum de vós é meu prisioneiro, porque Amor é, também, liberdade. 
Onde quer que eu esteja, onde quer que eu vá, o meu amor por ti permanecerá.
Sempre que duvidares, sempre que te sentires só, sempre que tiveres medo, eu vou estar ao pé de ti, porque vou estar no teu coração.
Sabes, neste tempo que passei contigo, aprendi muito, sobre mim, sobre ti, sobre a vida, sobre o mar e sobre o Amor. Sabes porquê? Porque sofri e porque deixei que a dor doesse. E doeu tanto que se transformou em Amor, em compreensão e em perdão. Porque temos que nos perdoar e perdoar os outros, para poder continuar a Viver de verdade.
Agora, vais devolver-me ao mar. É lá que eu pertenço. E tenho lá todos os meus, a aguardar o meu regresso. Porque, no fundo, eu sei que também me amas, tal como eu te amo a ti. Pois, a amizade é apenas uma forma de amor. Mas não tenhas medo,  eu nunca te vou abandonar. Estarei sempre ali, no mar. E mesmo quando já lá não estiver, porque vou partir antes de ti, ainda lá estarei para ti. Podes sempre ir lá visitar-me.
E, para que não tenhas dúvidas, vou deixar-te a Canção do Mar. Essa será a nossa canção. Ela ecoará pela eternidade. Ela fala de infinito, de amor e amizade, de saudade, de dor, de perdão, de alegria, de compreensão. Fala de sofrimento, aceitação, Crescimento e Transformação. Ela fala de Vida, de uma vida completamente Vivida.
O Rapaz depositou Estrela, delicadamente, no mar. O seu coração batia descompassado. E, se fosse mentira? E, se ela partisse? E, se ela o abandonasse?
Estrela ouvia o coração do Rapaz. E sussurrou-lhe de mansinho: Estou aqui. Estarei sempre aqui. Escuta. Não ouves? 
O Rapaz estremeceu. Bem dentro do seu coração ressoava a Canção do Mar. E ele sorriu. Sorriu com os lábios. Sorriu com os olhos. Sorriu  com o coração...

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