ROUBO POR ESTICÃO

Eu, o meu fio, a minha cruz, Sempre....
Hoje, fui vítima de um roubo por esticão. 
Reformulando, pois detesto a palavra vítima e nunca me "revi" nesse papel, hoje, roubaram-me um fio de ouro, que me tinha sido oferecido pela minha tia, Tité, quando fui batizada, há 52 anos atrás, e a cruz de ouro com diamantes incrustados,  que nele estava pendurada. 
Esta última pertenceu à minha avó Maria Josefa, Mãe do meu Pai. Avó que nunca conheci, pois já tinha falecido, há  mais de dez anos, quando eu nasci.
Eu usava este fio, com a cruz, diariamente, pendurado no meu pescoço, sem mesmo o tirar para dormir,  há  mais de 30 anos.
Ele só sai do meu pescoço no Verão, quando vou para a praia ou, muito esporadicamente, em ocasiões especiais, como viagens a países menos seguros ou  casamentos e batizados, quando não se coaduna com os restantes adereços.
Muitas vezes me avisaram para ter cuidado e não usar o fio, pelo menos visível.  Invariavelmente eu respondia, da forma um pouco irreverente que me é característica, que os ladrões tinham tanto direito a andar na rua como eu e o meu fio e cruz. Até porque aquela cruz, por si própria, me protegia.
Ultimamente, com o agravamento da crise, comecei a achar que era demasiado arriscado e até mesmo um pouco arrogante, da minha parte, andar a "pavonear-me" com tal tentação pendurada ao pescoço.
Contudo, o hábito era de tal forma grande que, embora tenha decido que ia deixar de o usar, efetivamente ainda não tinha sido capaz de deixar a companhia do meu "amuleto".
Assim, hoje, fui passear a Ísis, a minha cadela, à rua, pelas 13h30. Demos uma grande volta. A Ìsis gosta de cheirar e investigar cada erva, pedra, buraco ou objeto que encontra  pelo caminho.  
Como estou de férias, esta semana, não tinha nenhuma pressa especial e deixei-a deambular pelo pequeno matagal que se encontra perto do meu prédio. Não é um local isolado, pois a densidade populacional é muito grande e o pequeno matagal de ervas quase rasteiras, fica a poucos metros de muitos prédios. 
Ìsis no meu Jardim, em Santiago, no Natal
Quando a Ísis se cansou do matagal, quis dar mais um passeio até às traseiras do nosso prédio, as quais estão viradas para uma das ruas de maior trânsito da  Freguesia e onde se encontra também o terminal / início de uma carreira de autocarro (onibus, para os meus amigos brasileiros). 
Um autocarro estava na paragem e alguns passageiros encontravam-se ainda na rua, aguardando a hora de iniciar viagem. 
Cruzaram-se várias pessoas comigo, enquanto a Ísis lá andava toda entretida investigando as árvores, arbustos e o relvado, de alguns metros, que acompanha todo o passeio. 
Entre os que se cruzaram comigo, memorizei o condutor do autocarro, um jovem preto, envergando um quispo, preto e vermelho, e respetivo capuz  na cabeça,  e um casal já de alguma idade.
Os senhores pararam ao meu lado, encantados com a Ísis, e disseram-me que tinham tido um cão muito parecido com ela. Perguntaram-me se podiam fazer-lhe festas e, perante a minha resposta afirmativa, ficámos ali em amena cavaqueira. 
Estava uma tarde soalheira e eu tinha desapertado o casaco, pois sentia-me com calor, sem me aperceber que o fio se encontrava visível..
A certa altura, reparei que o rapaz preto, que se havia cruzado comigo, se encontrava encostado ao sinal de trânsito, perto de mim, aparentemente a falar ao telemóvel, pois a Ísis tentou aproximar-se dele. Eu olhei-o, para tentar perceber se a podia deixar ir. Não gostei do que me disse o seu olhar, mas, distraída com a conversa do casal, não voltei a pensar nele.
Por fim, os senhores despediram-se e, encaminhando-se na direção contrária à minha, desejaram-me Bom Ano. Eu virei-me, ligeiramente, para trás para lhes desejar o mesmo. Foi nesse momento que senti uma mão forte e agressiva no meu pescoço. A mão tentava, violentamente, passar entre a gola do casaco e o pescoço, procurando alcançar o seu objetivo. Encolhi o pescoço entre os ombros, verguei um pouco os joelhos, para manter o equilíbrio, e, finalmente, consegui pôr-me de frente para ele. 
Tentei, ferozmente, afastá-lo com a mão esquerda, não podia fazê-lo com a direita porque esta segurava a trela da Ísis e por nada deste mundo eu a soltaria, pois a Ísis ainda só tem 6 meses, portanto muito pouco juízo, e se eu soltasse a trela, na certa, ela correria livre para o meio da estrada, sendo que provavelmente acabaria por ser atropelada por um carro.
Apenas com uma mão para me defender, o combate estava perdido à partida. Num dado momento, senti a trela mais folgada, a Ísis devia estar mais próxima de mim, e foi então que ergui a mão violentamente e acertei com o punho da trela na testa do meu agressor. Mas, nesse momento, o fio rebentou, pelo que o ladrão se pôs em fuga.
Uma jovem senhora, na casa dos 30, cruzou-se com ele e passou-lhe uma rasteira.  O rapaz deu uma cambalhota no ar e estatelou-se de costas no passeio. Mas, não largando o fio, pôs-se em pé, como se tivesse molas, e continuou na sua fuga desenfreada.
O valor monetário das peças roubadas não me interessa muito, não estavam à venda. O seu valor como memória é inestimável..  E, essa perda doí-me enormemente.  Tal como me dói, enormemente, a violação  do meu espaço.
Fiquei com alguns arranhões na cara, sem importância. Pior mesmo, são os arranhões na alma. A sensação de raiva, impotência e um sentimento terrível, que penso que seja a coisa mais próxima do ódio.
Mas, esta raiva não é apenas contra aquele rapaz. Provavelmente, as suas condições de vida não são as melhores,  Provavelmente, não  teve grandes exemplos, nem lhe foram incutidos grandes valores morais, pelos seus familiares.
A minha raiva é, também, contra mim, que já deveria ter deixado de usar o fio há muito tempo, e contra todos os passageiros e motorista do autocarro, que se mantiveram impávidos e serenos, observando toda a cena.
A cobardia assusta-me.... mais do que os ladrões.... Ela é tanto causa do pânico coletivo, como da inércia coletiva.
Claro que participei à Policia e distribuí fotos, do fio com a cruz, pelos mais diversos comerciantes de ouro, mas não será tarefa fácil reavê-lo... Mesmo assim, dentro de mim, há uma esperança....

Aquele fio era meu, unia-me à minha Tia.....  Aquela cruz era minha, unia-me à minha Avó... Aquele espaço é e será sempre meu e aqueles que se atreverem a passar os seus limites, serão sempre alvo do meu maior desagrado e desprezo.
Resta-me agradecer àquela mulher corajosa que, na tentativa de me defender, passou uma rasteira ao ladrão.  Na altura não o fiz, tenho pena, mas, a raiva e o nervosismo era tanto que não consegui articular palavra.
Ainda que ela nunca o possa ouvir ou ler, para ela aqui fica o meu Bem-haja, pela sua coragem e, também, por ter sido a única que me defendeu... Ela,  MULHER, enquanto todos os outros, vários homens, bem resguardados, no autocarro parado, observaram toda a cena, envoltos na sua cobardia...

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