2003 - 2013 - O QUE NÃO NOS MATA, TORNA-NOS MAIS FORTES

Às vezes, recebemos certas notícias que nos deixam estarrecidos. O que ouvimos é tão inacreditável, tão inimaginável que, por algum tempo, nem reagimos. É como se tivéssemos acabado de ouvir a novidade mais prosaica do mundo.

Há 10 anos atrás, num dos Verões mais quentes de que tenho memória, recebi um telefonema a informar-me de que a minha herdade estava a arder. 
Quase calmamente, entrei no carro com o meu marido e fizemos rapidamente as cerca de três dezenas de quilómetros que nos separavam do Adail.
A uma distância segura, observamos as imensas labaredas que consumiam mato, pastos e árvores. As extraordinárias árvores que eram a minha maior fonte de sustento, os meus Sobreiros.
Os meu olhos estavam secos. Dentro da minha cabeça ouvia repetidamente as mesmas palavras "Isto não pode estar a acontecer", embora ainda não conseguisse interiorizar a real dimensão da minha perda e todas as suas consequências.
Os Bombeiros procuravam minimizar os estragos, mas, as encostas escarpadas e cheias de pedra não lhes facilitavam o trabalho. Somente, foi possível conter o fogo na parte plana da herdade,
Abatera-se um trovoada seca sobre toda aquela zona. Um raio havia caído do céu e, naquele dia de calor imenso, espalharam-se línguas de fogo por todo o lado.
Em poucas horas tudo se alterou. A minha vida mudou, para sempre, naquele dia. 
Dois dias depois fiz 43 anos. Olhei a vida de frente. Arregacei as mangas e fui em frente.
A minha loja estava a morrer aos poucos e sem o suporte dos meus sobreiros não seria possível mantê-la por muito mais tempo. Durante um ano labutei tentando encontrar soluções até que a consegui alugar. 
Ainda que tivesse habilitações superiores, a minha idade não me ajudava a encontrar grande emprego.  Estudei  terapias alternativas e fui trabalhar como terapeuta de Shiatsu e de Podoreflexologia, trabalhei também como Vendedora / Comercial e por fim num call center.
Em 2009, encontrava-me novamente numa situação precária relativamente a trabalho, com dois filhos a meu cargo e outros encargos de que não podia fugir. 
Então recebi um telefonema para ir a uma entrevista de emprego. Lá fui, um pouco cética, era para trabalhar como secretária numa Associação de Estudantes Universitários. Pensei logo, vai ser uma perda de tempo, quem é que quer uma quase cinquentona para trabalhar com jovens.
Acho que gostaram de mim. Estavam no início do mandato. Havia "tudo" por fazer, por arrumar, por organizar. Fiquei. 
As Direções da Associação mudaram, mas eu fui ficando, trabalhando com novos "patrões". Novos em todos os sentidos da palavra. 
Patrões estes que maioritariamente acabam por se tornar meus amigos e  visitarem-me, mesmo quando já não fazem parte da Direção. 

Vi-os crescer em idade, experiência, trabalho. Partilhei com eles as preocupações e as vitórias.
Ontem, voltava de um fim-de-semana no Alentejo. Um bom fim-de-semana com a família e alguns amigos, na praia, sem vento, o que é raro na costa alentejana, com calor e uma água deliciosa.
Eram perto das 11h da noite. O telemóvel tocou. Novamente caiu sobre mim uma notícia paralisante. 
Tinha deflagrado um incêndio na  Associação de Estudantes.
Já passava da meia-noite quando cheguei à Faculdade. As luzes dos carros de bombeiros e da ambulância projetavam estranhas luzes azuis no céu.
Da rua, vi as marcas negras das chamas na parede exterior. Vi as janelas sem vidros, como grandes olhos cegos. Vi os alumínios retorcidos, testemunhando o calor do braseiro.
Entrei no edifício, os pés caminhavam por cima de um lençol de água. Estava escuro e cheirava a fumo, a fios e equipamentos eletrónicos queimados. Espreitei o meu local de trabalho, parecia povoado de monstros negros, inidentificáveis.
Outra vez, não.
Vi os meus Chefes atordoados e cabisbaixos. 
Ali se encontravam mais de 100 anos de história carbonizados, todo o arquivo, todo o trabalho e bens da AE, todo o meu trabalho. 
Incrédulos, incapazes de alcançar as reais consequências de tão grave perda.
Hoje, estamos arregaçando as mangas. 
O que não nos mata, torna-nos mais fortes

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