O VIAJANTE - CAPÍTULO I


 


Me sinto em casa em qualquer lugar
Mas sou turista em todos
Sou viajante em qualquer lugar
Sou uma parte do todo

                                                    O Viajante - Forfun 











Mais uma vez, pôs a mochila às costas e, sorrindo, disse adeus aos seus mais recentes amigos, que o viam partir com alguma tristeza e incompreensão.
Há mais de dez anos que caminhava, meio à deriva e sem destino, por esse mundo fora.


Após ter terminado a Faculdade, dissera aos pais que queria ter o seu ano sabático e pretendia ir viajar pela Europa. Estes, não tendo grandes recursos financeiros, acharam a ideia um enorme disparate e, desde logo, lhe disseram que não contasse com eles para o ajudar nessa loucura, pois o esforço que haviam feito para lhe dar um curso superior já fora enorme e, aparentemente, não tivera qualquer utilidade, uma vez que ele não pretendia procurar um trabalho, como seria lógico, mas antes ir divertir-se, à deriva, por esse mundo fora.
Mas, João estava irredutível e esclareceu-os de que para a sua viagem não precisava de muito dinheiro. Pois ia levar só o absolutamente necessário para os primeiros dias, pelo que o que tinha juntado, com os seus trabalhos de verão e ao fim-de-semana, era mais do que suficiente.
A bagagem também seria pouca e, para a transportar, necessitava apenas de levar a sua mochila de campismo.


Ao fim de um ano, João já tinha percorrido grande parte da Europa. Ia fazendo amigos em todos os locais por onde passava e arranjando trabalho, sempre que o dinheiro se esgotava.
Nunca se fixava, por muito tempo, em lugar nenhum, pois, assim que sentia que estava a criar raízes, punha a sua mochila às costas e partia de novo.
Ocasionalmente, mandava postais para a família e, mais raramente, telefonava-lhes só para confirmar que todos se encontravam bem.
Num velho caderno, de capa dura, ia anotando as datas, factos ou menções a lugares importantes ou significativos.
O caderno chegou ao fim e João foi arranjando novos cadernos para as suas anotações.
Pois o seu ano sabático transformara-se em anos e as anotações, no caderno, de centenas passaram a milhares.
Quase no final do seu terceiro ano de Viajante, João decidiu regressar a Portugal, para uma curta visita aos pais e amigos e para se livrar de alguma bagagem de que já não necessitava.

 
Correspondendo aos desejos dos pais, passou o Natal e Ano Novo com a família e, depois, despediu-se de novo, partindo, desta feita, com destino à Ásia. 
Os pais disseram-lhe adeus de coração apertado. A Europa era a Europa, mas a longínqua Ásia era cheia de perigos, mistérios, conflitos...

João vagueou, por três longos anos, pela contrastante e misteriosa Ásia.
Viajou a pé, de barco, à boleia, a cavalo, de camelo, em transportes periclitantes, pejados de gente e animais.
Conheceu gente extraordinária e tomou contacto direto com diferentes e estranhas culturas e tradições, novas e místicas filosofias e religiões.
Para sobreviver trabalhava ocasionalmente, ou pernoitava e comia algumas refeições em casa destes e daqueles, que se cruzavam no seu caminho, normalmente, a troco de qualquer trabalho de que necessitassem.
Não lhe era difícil arranjar trabalho, a troco de dinheiro, ou abrigo e alimentação, pois, se já antes de se ter tornado viajante, tinha várias competências e habilitações, os seus muitos dias de viagem e contactos com outros povos e culturas diferentes deram-lhe muitíssimas mais.
Com seu pai trabalhara como carpinteiro, canalizador, eletricista ou pintor. A sua formação académica habilitara-o para ensinar física ou matemática em qualquer parte do mundo. Os trabalhos de verão deram-lhe experiência como empregado de mesa ou balcão, nadador-salvador ou instrutor de surf, pelo que, com grande facilidade, conseguia realizar qualquer coisa de que os outros tivessem necessidade.


























O seu olhar, calmo e límpido, e o seu sorriso, fácil, tornavam-no confiável e, no geral, não arranjava problemas, nem sentia grandes dificuldades.  Até porque as exigências que tinha com o seu próprio conforto, alimentação ou vestuário, eram muito poucas.
Mesmo assim, por mais de uma vez, esteve na iminência de ser preso ou foi envolvido em situações perigosas, por o terem confundido com um ladrãozeco ou, apenas, por se encontrar no lugar errado, à hora errada.


Kibutz -  Israel


Ao longo de mais de três anos, João meditou com os budistas, prestou culto a Brama, Shiva ou Vixnu, ficou alojado em vários kibutzim, trabalhou nas plantações de papoilas ou nos campos de arroz, admirou  a arquitetura das Mesquitas, dançou com os Mongóis, trilhou a Rota da Seda...

O seu rosto,  crestado pelo sol, pelo vento, pelo frio, enfeitou-se de profundos vincos das rugas defensivas e de expressão.
As mãos foram ficando ásperas e cheias de calosidades, as pernas tornaram-se fortemente musculadas e os seus pés de caminhante eram, agora,  rijos e calosos.
Sentia-se feliz, mas um pouco envelhecido e cansado. As saudades da família fizeram sentir-se e João decidiu que, mais uma vez, estava na altura de regressar casa.
O tempo passou rápido, entre sonos prolongados, almoçaradas e jantaradas e encontros com familiares e amigos. Todos queriam ouvir as descrições das suas viagens, dos estranhos costumes de alguns povos, ou das situações divertidas, assustadoras, comoventes ou estranhas em que se tinha visto metido.
Mas, com o aproximar do final do mês, João começou a sentir-se inquieto. A sonhar com a savana e o glorioso sol africano.
Era tempo de se pôr a caminho. Ainda havia tanto mundo por onde caminhar....




Continua....

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