LUÃ

Capítulo I - A Tribo dos Homens da Serra

Luã olhava fixamente a sua imagem refletida na água. Estava feliz.




Untara conscienciosamente as sobrancelhas e a sua voluptuosa cabeleira com a lama escura e viscosa da margem do rio. O resultado fora fantástico.
Agora ninguém a olharia com estranheza ou desconfiança, estava igual a todos os outros da sua Tribo.
Desequilibrou-se com a súbita e violenta pancada que recebeu na cabeça. Conhecia bem a força e aspereza daquelas mãos.
- Levanta-te daí, sua imprestável. Onde estão os gravetos que te mandei apanhar? - vociferou a sua mãe e, sem transição, afocinhou-a na água, retirando-lhe toda a lama dos cabelos, enquanto praguejava. - Sua idiota,  encher a cabeça com os bichos que vivem nessa lama fedorenta.
Luã, mordeu, com força, o lábio inferior. Não choraria. Sabia, por experiência, que ainda seria pior.
Quando deu por terminada a limpeza da cabeça de Luã, a mãe pô-la em pé, puxando-a pelos cabelos, e, dando-lhe um violento pontapé no rabo, gritou - Corre, vai buscar os gravetos, não podemos deixar morrer as fogueiras.
A criança correu para a floresta e, com grande rapidez, juntou um enorme molho de lenha. Pegou na corda de entrançado, que sempre transportava na sacola, e atou-o, habilmente, com um  nó estranhamente forte para as suas mãos infantis.
Caminhava, agora, com alguma dificuldade, em direção às tendas, tentando equilibrar o pesado fardo nas suas costas. À distância poderia parecer que o grande feixe de lenha se deslocava sozinho, pois a diminuta figura de Luã desaparecia quase por completo debaixo deste.
O frio tinha finalmente abrandado, permitindo-lhes deixar a Gruta que os abrigara durante o longo inverno. 

Akum, o mais forte e inteligente homem da Tribo, encontrara aquele local, quando, com os outros caçadores, procurava pegadas e trilhos de animais para caçar e decidira que aquele era um bom sítio para passarem o Verão.
Tinham armado as tendas em círculo, numa grande clareira plana, perto do rio e muito próximo de uma encosta a pique. Assim, encontravam-se protegidos dos ventos e dos animais, pela encosta, e próximos da água, que lhes era essencial.
De todos os sítios em que já vivera com a sua Tribo, Luã achava este o melhor e mais bonito. A densa floresta que rodeava aquele planalto, para além de ser uma abundante fonte de lenha,  era rica em várias espécies de frutos, bagas e ervas e o habitat de vários animais pequenos e fáceis de caçar. Luã nunca, até então, havia comido tanta carne fresca e saborosa.
O grande terreiro, circundado pelas tendas, era o centro de atividades onde se desenvolvia grande parte da vida da Tribo dos Homens da Serra. 




Enquanto uns cortavam e trabalhavam a pedra e os ossos para fazer armas de caça, utensílios para cozinhar, esmagar as sementes ou coser o vestuário; outros cortavam e cosiam as peles dos animais para confecionar o vestuário e as bolsas, onde transportavam grande parte dos seus haveres; outros, ainda, faziam cestos de palha e potes de barro, onde seriam acondicionadas ou trituradas as bagas e sementes. 
Havia sempre alguém de guarda às fogueiras. Dava muito trabalho fazer fogo, pelo que era conveniente nunca deixar apagá-las, para além de que a sua presença ajudava a manter os animais perigosos afastados.



A mãe encontrava-se com outras mulheres junto às fogueiras, assando a carne da última caçada. Luã depositou o grande molho de lenha no chão, numa pequena gruta junto ao terreiro, e retirando uma parte, cobriu a restante com a grande pele de *auroque. Convinha mantê-la protegida, pois para além de nunca se saber quando iria chover, a geada da manhã iria enchê-la de humidade.
Depois, dirigiu-se para as fogueiras e ajoelhou-se junto à mãe, começando a partir os grandes paus ao meio e a colocá-los cuidadosamente na fogueira. Quando terminou, perguntou à mãe se podia ir fazer os seus enfeites. 
A mãe rosnou uma resposta imperceptível e empurrou-a com a mão e ela sorriu feliz, de cabeça baixa, para que a mãe não visse, pois poderia arrepender-se de imediato.
Aconchegou-se o mais longe dos olhares que lhe foi possível e começou a tirar os seus bens mais precisos de dentro da sua sacola. Eram sementes, bagas e pedrinhas que ela pacientemente recolhia, furava e unia com cordões, fazendo variados colares e pulseiras
Estava agora a fazer um muito bonito que queria oferecer à mãe, por isso não queria que ninguém o visse antes de estar pronto.
Concentrada na sua atividade, só muito depois percebeu que a olhavam fixamente. Era Oko que a observava despudoradamente. Luã tentou esconder o colar, mas ela sorriu-lhe, com a sua feia boca desdentada. E, Luã percebeu, pela primeira vez, que nos imensos e belos olhos, da desfigurada e aleijada mulher, havia carinho e compreensão, algo que ela raramente tinha visto, relativamente à sua pessoa. 
Oko era, simultaneamente, temida e imprescindível. Era ela que, arrastando o seu corpo aleijado, recolhia as ervas e plantas, com quais preparava as mezinhas que tratavam as maleitas de todos na Tribo. Era ela também que ajudava nos partos, tratava das feridas e das dores de dentes.
Luã, numa noite de insónia, ouvira uma conversa entre os pais e ficara a saber que as deformidades do corpo e rosto de Oko se tinham ficado a dever a uma guerra entre Tribos. 
Antigamente, a Tribo dos Homens da Serra era bem mais pequena e, por vezes, por causa das mulheres ou da caça, entrava em confronto com outras tribos rivais, particularmente com a Tribo de que Oko fazia parte.
A Tribo dos Homens da Serra tinha, nessa altura, falta de mulheres. Algumas tinham morrido de parto, outras em consequência de ataques de animais. 
Então decidiram atacar a Tribo de Oko, para raptar algumas mulheres. Foi uma luta feia, em que muita gente tinha ficado ferida ou mesmo morrido. 
A Tribo dos Homens da Serra venceu e os homens começaram a escolher as mulheres que iam levar.
Subitamente, descobriram Oko, que se mantivera escondida dentro de uma pequena gruta, dissimulada por detrás de um arbusto. Ela era, então, uma jovenzinha bela, esbelta e alta, com uns enormes olhos cor de mel, que todos os homens cobiçavam e todas as mulheres invejavam. 
Os homens emitiram grunhidos de satisfação e aplaudiram ao ver a bela mulher. Esta ficou quieta e encolhida, no meio do círculo formado pelos vencedores.
Quando se preparavam para ir embora, um dos homens da Tribo de Oko, aquele a quem ela se encontrava prometida, avançou, grunhindo enraivecido, e, empunhando ameaçadoramente uma lança, atacou, sem dó nem piedade, a mulher, gritando - Não será vossa, não será vossa!

Por um momento, todos ficaram paralisados de espanto. Antes que o abatessem,  ele ainda teve tempo para cortar a língua de Oko.
Quando, finalmente, os vencedores partiram, caiu o silêncio. Oko e o homem jaziam inertes numa poça de sangue. Os olhos, sem vida, do homem, fitavam, esbugalhados, o céu cor de chumbo. 
Oko gemeu baixinho, inicialmente tão baixinho que ninguém se apercebeu.  Depois pegaram-lhe ao colo e levaram-na ao Velho, o curandeiro da Tribo. 
Durante muito tempo, Oko esteve entre a vida e a morte. Ardia em febre, delirava ou ficava imóvel e silenciosa durante muito tempo.
Um dia, abriu os olhos. Observou tudo à sua volta e, com muita dificuldade, tentou erguer-se. 
Daí em diante foi sempre melhorando, mas o seu rosto deformado, a sua perna, vergada num arco, semi-inutilizada, e o pequeno coto de língua, que não lhe permitia falar, tinham-na tornado na mulher mais feia, mais estranha e, pensavam todos, mais inútil que alguma vez fizera parte da Tribo.
O Feiticeiro acolheu-a para sempre e foi-lhe ensinando todos os seus segredos e magias e, anos mais tarde, quando, por motivos de necessidade, as duas Tribos se uniram formando uma só, Oko viu-se subitamente como Membro da Tribo que era a causa da sua desgraça.
Ela passou a tratar de todos os doentes e feridos, mas, todos a temiam, pois ela olhava-os com os seus enormes olhos cor de mel, como se lhes conseguisse ler a alma e conhecer todos os seus pensamentos. 
Apenas Akum parecia aceitá-la, tal como era, sem se sentir temeroso, nem demonstrar qualquer incómodo pela aparência desagradável da mulher.
Luã sorriu para a mulher e Oko, arrastando-se, veio sentar-se ao pé dela.
Depois, pegou-lhe nas mãos com suavidade, olhou-a profundamente nos olhos e sorriu-lhe. 
A sua boca não emitia mais que grunhidos, mas os seus olhos e mãos falavam. Luã, aguardava na expetativa, pois percebera que aquele era um momento muito importante na sua vida. Algo de extraordinário se ia passar.
A velha mulher começou a retirar vários sacos pequenos de dentro da sua sacola. Dispô-los  primeiro numa linha vertical, depois fez um linha oblíqua de cada lado da primeira linha e outras duas que saíam do final da linha, formando duas novas linhas que se afastavam. No topo da linha colocou uma série de sacos em círculo.
Olharam-se, por um momento. Luã sentia-se um pouco confusa, mas, de súbito, julgou ter percebido.
Fixou, de novo, os olhos imensos de Oko  e colocou uma das mãos na sua própria cabeça e outra nos sacos que se encontravam em círculo e, em seguida, tocou ambas as pernas, ao mesmo tempo que apontava para as linhas inferiores que davam continuidade à linha inicial. 
Depois, olhou interrogativamente para Oko e o rosto desta abriu-se num sorriso imenso. Por um momento, Luã conseguiu vislumbrar toda a beleza daquela mulher, a qual agora se encontrava escondida por debaixo das suas deformidades.
Oko pegou, novamente, nas mãos de Luã, desta vez, fortemente. Depois olhou-a fixamente. Colocou-lhe a mão no peito, no lugar do coração, e puxou a mão de Luã até ao seu próprio peito.
Ficaram assim, por um momento mágico, inesquecível e interminável, com as mãos sobre o coração uma da outra, olhando-se fixamente, numa promessa de que o Sol, a Terra, o Rio e o Céu eram testemunhas.

Fim do I Capítulo

*Auroque (Bos primigenius) é um bovino extinto em 1627. Tratava-se de um animal de grandes dimensões e comportamento indócil. Seu habitat, em épocas pré-históricas, se estendia da Europa Ocidental à Península da Coreia e da Sibéria ao subcontinente indiano

Bibliografia

A criança do Lapedo



A estação do Neolítico antigo de Cabranosa(Sagres). Contribuição para o estudoda neolitização do Algarve

Ciência Hoje

Cro-Magnon

Homem de Cro-Magnon

Lusitaniae Castrum

Nove mitos e verdades sobre os neandertais

Pré-história

Pré-história da península Ibérica

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