Haja Paciência

Eu e a minha Irmã na charrete puxada pela Estrelinha

Recordo a minha infância e juventude como algo muito divertido e agradável. 









Nas férias íamos todos para o monte. Era sempre casa cheia.

Em plena liberdade, eu e as minhas primas inventávamos toda a espécie de brincadeiras. Andávamos de bicicleta, líamos, jogávamos às cartas, tomávamos banhos no tanque, quando o meu pai o mandava limpar. Mesmo assim, escorregar nos limos verdes era um ver se te avias.
Até criámos um clube secreto, com sede no andar superior do palheiro, onde imaginávamos toda a sorte de aventuras. À vez, fomos "Os Cinco", O Inspetor Patilhas e o Ventoinha (programa de rádio-comédia dos Parodiantes de Lisboa), ou os Três da Vida Airada, Cocó, Ranheta e Facada, sendo que nos faltava um nome, pois éramos quatro.
Outras vezes, armadas de mantas ou colchões, livros, telefonia (rádio) e cartas, lá íamos à procura de um sobreiro de copa larga ou pernadas generosas. Deitadas nas pernadas ou na manta, à sombra, passávamos horas a ouvir música, a ler, a jogar às cartas e a conversar
Noutros dias, sem qualquer supervisão de adultos, dávamos longos passeios na pequena charrete, puxada pela paciente Estrelinha, que sempre transportou diligente e cuidadosamente a criançada.  Primeiro à minha irmã e aos amigos, depois a mim e aos meus amigos.
Nas idas à praia, era sempre um grande "familório". Armados de mesas, cadeiras, geleiras e mais uma quantidade de traquitana apropriada para grandes dias de praia.
Nos anos que passámos um mês de férias, em Agosto, em Sines, o esquema era o mesmo. Casa cheia, liberdade, brincadeiras e banhos até fartar.
Mesmo quando estávamos na vila, hoje cidade, a nossa liberdade era grande e com 10, 12 anos já saíamos sozinhas, para dar as nossas voltas.
Os tempos eram outros e os perigos eram quase inexistentes. Havia poucos carros, não se ouvia falar de raptos, assaltos ou pedofilia.
Não, não tínhamos telemóveis, nem jogos de computador, nem mp3, nem consolas e éramos felizes. 
Bem, não tínhamos por uma razão bem simples, não havia. Mesmo a televisão só tinha um canal, a RTP, a preto e branco, e só em 1968 nasceu a RTP2, igualmente a preto e branco.
Foi uma infância e juventude feliz, que recordo com saudade e alegria, mas não acho que no meu tempo é que era bom só porque não tínhamos apetrechos eletrónicos para "brincar".
Falta-me um bocado a paciência para os constantes ataques à forma de vida atual, como se, por qualquer absurda razão, as pessoas pensassem que as suas vivências é que são boas e que as dos outros, das gerações mais jovens, são recheadas de coisas más.

Todos os tempos têm coisas boas e más, mas o maior problema nunca está nos tempos, nem nas tecnologias ou falta delas, nem nos costumes, hábitos ou tradições de cada época, mas, sim, na forma mais, ou menos, equilibrada como as pessoas as vivem.
Os meus filhos nasceram e cresceram na época da emergência destas tecnologias, mas nem por isso deixaram de ter amigos, brincar das mais diversas formas, praticar desportos, ir ao cinema ou passear. Tal como nunca deixaram de estar à mesa, à hora das refeições, com a família.
"Carreguei" amigos dos meus filhos para férias, para o cinema, para a praia. Em nossa casa e à mesa havia sempre lugar para mais um. Transportei os meus filhos e, por vezes, também os amigos para campos de férias e, mais tarde, para semanas de campismo.
De facto, a utilização dos telemóveis e afins pode tornar-se perniciosa, para a saúde mental, para a convivência familiar e social ou para o desenvolvimento equilibrado dos jovens e crianças, mas apenas se não houver sensatez, principalmente por parte dos adultos.
Épocas houve em que as crianças eram apenas para ser vistas, não ouvidas. Em que comiam antes dos adultos e iam para a cama bem cedo, para não os incomodar, ou em que, nas classes sociais mais baixas, começavam a trabalhar logo que terminavam a escola primária ou mesmo antes disso.
Não há épocas más, nem épocas boas. Há costumes, há circunstâncias, há mudança, há evolução e quem dera que houvesse sempre bom-senso e equilíbrio nos comportamentos dos humanos.
A origem deste "ataque" aos jovens é, de alguma forma, semelhante à da mensagem que por aí muito se pretende passar, particularmente nas redes sociais, de que temos que estar todos, permanentemente, em estado de elevada felicidade, de que se formos positivos os problemas fogem de nós, de que ser velho é apenas uma coisa de espírito, ou de que, mesmo que se tenha uma doença grave, vai sempre "correr tudo bem", como se a morte ou a velhice e a perda de algumas faculdades não existisse. 
Esta filosofia da ilusão ou do alheamento da realidade assusta-me, principalmente porque o encarar essa mesma realidade pode ser devastador para aqueles que acabam por ter que se confrontar com o envelhecimento, a perda de capacidades, a morte, ou os problemas que não se podem solucionar apenas com a força do pensamento positivo.
Não há problemas irresolúveis, mas, grande parte das vezes, as soluções, dos mais complexos e graves, passam por muitas complicações, perdas ou alterações de forma de vida.
Um bom banho de realidade faz sempre bem a qualquer um. Tanto ou mais bem que uma infância feliz, uma família que nos apoia ou amigos verdadeiros que vibram com as nossas alegrias e choram com as nossas tristezas. 

Comentários