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MARIA SANT'IAGO SITE |
Partilho convosco três pequenas histórias, acerca da Eutanásia, de Maria Sant'Iago.
Boas reflexões...
- COMO GATO AO SOL -

Puxei ligeiramente
os estores para cima, impedindo que a luminosidade se tornasse demasiado
agressiva, e dirigi-me à cama.
Ela já estava
acordada e olhava-me docemente, como quem pede desculpa. Beijei-lhe a testa,
carinhosamente, dizendo: - Bom dia, preguiçosa. Então dormiu bem?
Ela baixou as
pálpebras, uma vez só. Era o sinal combinado para o Sim.
Comecei, então, a
rotina diária. Tirar a fralda, limpar, dar banho,
Passei a esponja com
suavidade pelo seu corpo envelhecido, como quem lava um bebé.
As suas mamas,
outrora sensuais e imponentes, pendiam agora murchas como balões em final de
festa. O seu corpo era apenas uma distorcida e vaga recordação daquela que fora
uma bela mulher. A minha Mãe.
Virei-a de lado e
empurrei-a, com gentileza, mas firmemente, para o outro lado da cama, retirei
parcialmente o lençol sujo e molhado e coloquei um lavado, que libertava uma
ligeira fragrância a baunilha. Fui para o outro lado da cama e rolei-a para
cima do lençol lavado, retirei o sujo e estiquei e entalei o lavado, de forma a
que este não ficasse com nenhuma ruga.
Chegara a hora da
massagem de corpo inteiro. Inspecionei todos os locais do corpo mais
suscetíveis de serem atacados pelas escaras. Parecia estar tudo bem, apenas uma
ligeira mancha avermelhada no calcanhar,
Espalhei o creme,
abundantemente, por todo o seu corpo, colocando camadas mais espessas nos
calcanhares, costas, ancas, nádegas e cotovelos.
Vesti-a com um
pijama preto, macio e confortável. Ela sempre adorara o preto.
Faltavam só os
cabelos, que desembaracei e penteei da forma que ela sempre gostara, sem
ripados, apenas escorregando naturalmente, no seu jeito rebelde. Paris, o
perfume, era o toque final. Estava pronta.
Chamei o meu marido
para me ajudar. Felizmente, era sábado e eu podia demorar-me nos preparativos.
Os dois juntos sentámo-la na cadeira de rodas, prendemos o seu corpo inerte e
sem força à cadeira, por forma a mantê-la direita e confortável.
Embora fosse
inverno, estava sol e a temperatura era amena, pelo que a levei lá para fora. O
alpendre estava inundado de sol. Levei-a até junto da mesa, onde sempre
tínhamos passado tardes tão agradáveis, em família e com amigos, e dei-lhe o
pequeno-almoço, lentamente, para que não se engasgasse ou sentisse que a
apressava.
Por fim, recostei-me
no cadeirão e comecei a contar-lhe todas a novidades da semana.
A certa altura,
perguntei – Sabe o que se discute agora no Parlamento? – continuei sem aguardar
a resposta que, sabia, ela não me podia dar. A minha Mãe fitava-me juntando um
pouco as sobrancelhas, em expetativa. – Estão a discutir a Eutanásia. Eu tenho tantas
dúvidas. Acho que é um assunto tão complicado e difícil. E a Mãe que acha?
Queria isso para si?
A minha Mãe desviou
o olhar e eu segui-lho. Ela mirava, agora, o gato da vizinha que, com a
desfaçatez que lhes é própria, se encontrava deitado, preguiçosamente, no muro
do nosso quintal, de olhos semicerrados, com uma expressão beatifica,
aproveitando o sol.
Encarei-a, ela deu
duas piscadelas rápidas com os olhos. O seu rosto, iluminado pelo sol, tinha
uma expressão beatífica, um meio sorriso, de quem se encontra em paz consigo
própria e com o mundo.
Abracei-a. Obrigada,
Mãe. Que bom que continue a ser feliz.
Ficámos ali, em
silêncio, ao sol, até que começou a esfriar.
Mais um dia de vida.
Mais um dia de sol. Mais um dia em que a pude abraçar.
- CATIVA -
Duas da manhã.
Finalmente, consegui deitar-me. As costas doem-me. A cabeça doí-me. Todo o meu
corpo reclama descanso. Estou exausta.
O zumbido vago do
oxigénio, que ecoa pela casa silenciosa, embala-me num sono desassossegado,
povoado de sonhos
Acordo
sobressaltada. Será que deixei passar a hora? Viro-me na cama, dolorosamente.
Os números verdes, brilham no escuro. Ainda tenho mais 10 minutos.
Cinco e meia da
manhã. Ergo-me rapidamente. Está frio e sinto-me dorida, mas começou um novo
dia e não há tempo a perder.
Bom dia mãe - diz
Joana, respirando audivelmente entre as palavras, logo que entro no
quarto.
A cada dia que
passa, é-lhe mais difícil respirar e mover-se.
Beijo-a
debruçando-me sobre a cama e ela, lentamente, coloca os seus, frágeis e
ineficientes, braços à volta do meu pescoço. Ergo-a com esforço, engolindo o
gemido que a dor violenta nas costas quase me arranca.
A cadeira de rodas
elétrica ronrona a caminho da casa de banho. A higiene matinal é um processo
lento, doloroso, frustrante. Deixo-a sozinha, amparada por duas cadeiras,
enquanto preparo o pequeno-almoço.
Joana mastiga, mais
por hábito do que por prazer, o seu pão preferido,
Duas horas depois,
está tudo pronto e volto a deitá-la. Já não é possível deixá-la na cadeira,
sente-se incomodada se lá estiver muito tempo e pode cair.
A televisão está
ligada. Sobre a mesa hospitalar ficam o computador, o telemóvel, os comandos, o
copo de água com palhinha e umas bolachas que, tenho a certeza, encontrarei
intactas quando voltar.
Corro para o
autocarro que, àquela hora, vai cheio de gente meio adormecida e maldisposta.
Milagrosamente, encontro um lugar vago e sento-me, grata por aqueles minutos de
descanso.
Penso na minha
menina e no seu sofrimento. Já não tenho lágrimas. Os meus olhos estão secos,
desenganados. Gastei-as nas muitas noites que passei acordada, chorando e
pedindo a Deus um milagre.
O pai não aguentou
ver o sofrimento da filha. Cada dia voltava para casa mais tarde, mais
silencioso, mais distante.
Um dia, informou-nos
de que ia emigrar. Ia para a Alemanha, encontrara um bom emprego e ia fazer-se
à vida.
Passaram já cinco
anos desde a sua partida.
De tempos a tempos,
manda algum dinheiro, nunca escreve e raramente telefona
Foi bom que tivesse
mandado o dinheiro, permitiu-me comprar a cama articulada, a cadeira de rodas
elétrica, o computador e outras coisas impossíveis de adquirir, com o que
conseguia ganhar como mulher a dias.
Voltei a casa ao
meio-dia, para dar o almoço à Joana. Habitualmente, enquanto comemos, vou-lhe
contando coisas engraçadas ou interessantes que vejo na rua ou nas casas em que
trabalho. Mas, hoje, a Joana não me deixa falar.
Para de comer e
olha-me muito séria, depois na sua voz lenta e cansada, diz: - Mãe, não quero
que te zangues, nem que fiques triste ou aborrecida com o que te vou pedir. -
Olho-a intrigada. Nada que me diga ou peça poderá aborrecer-me, penso eu. Mas
estava enganada. - Mãe. - continua ela. - Eu quero morrer. Estou muito cansada
de sofrer e de não poder viver. E preciso que tu me ajudes a morrer.
Por momentos fico
petrificada, sem saber o que fazer, ou dizer.
- Não digas
disparates. Não queres nada morrer e eu, de certeza, não te vou ajudar a
morrer. – .digo, quase gritando
Já sei, tu sentes-te
é sozinha e eu vou encontrar a solução. Trago a roupa das minhas patroas para
passar cá em casa e assim passo menos horas fora.
A minha filha
olha-me com os olhos rasos de lágrimas - Mãe, por favor, se gostas de mim, vais
ajudar-me.
Até logo, digo-lhe,
com maus modos, já estou atrasada. Quando voltar logo falamos.
Estes três últimos
meses têm sido terríveis. Não, não, posso matar a minha filha. Eu dei-lhe a
vida, não lha posso tirar.
Ela está cada vez
mais triste. Continuamente encontro o seu olhar suplicante.
As noites têm sido
insones. Já fui à igreja. Já falei com o médico, para lhe pedir mais
medicamentos para a depressão. Já pedi aos amigos que a viessem visitar, mas
nada parece resultar.
Ela só tem um
pedido, uma exigência, um objetivo.
Hoje, explicou-me o
que era preciso fazer. Dizendo para eu não me preocupar, que ela não iria
sofrer. Simplesmente adormecia.
Tomei uma decisão.
Não sou Deus. Sei que não tenho direito de tirar-lhe a vida, mas não aguento
mais vê-la sofrer. Se já era difícil vê-la definhar e ficar, de dia para dia,
mais dependente, agora é impossível vê-la suplicar que lhe dê paz.
Vai ser hoje à
noite. Só espero que funcione como ela diz. Não posso imaginar o que seria se
lhe causasse ainda mais sofrimento.
Já é noite.
Jantámos, ou fizemos de conta. Chegou a hora. Procedo de acordo com as suas
instruções e depois sento-me na cadeira, ao lado da cama, segurando-lhe na mão.
Joana olha-me,
agradecida, e sorri. Há muito, muito, tempo que não a via sorrir.
Os seus olhos vão
perdendo e brilho. Lentamente, as suas pálpebras descaem. O som da sua
respiração vai diminuindo até se tornar inaudível. A sua mão pende, agora,
inerte dentro da minha.
Já nasceu o dia, mas
continuo a olhá-la, incapaz de me mexer, de chorar, de gritar.
A custo, ergo-me e
ligo para o médico. Ele vem rapidamente. Conto-lhe tudo. Ele olha-me e, sem
dizer uma palavra, pousa a sua mão com suavidade no meu ombro e, em seguida,
toma as providências necessárias.
Sinto-me como se
vivesse num sonho. Ou será pesadelo? A realidade parece-me desfocada. Tudo se
passou demasiado rápido.
Estava preparada
para enfrentar a justiça. Nenhuma justiça me poderá causar mais dor do que
aquela que sinto. Nenhum juiz me julgará mais duramente do que eu própria. Mas,
o médico decidiu de outra maneira e passou a certidão de óbito, atribuindo a
morte a uma complicação da doença.
Os últimos dias
foram alucinantes. Doei todos os equipamentos hospitalares, pois, certamente,
farão bom jeito a outras pessoas. Limpei a casa de alto a baixo. Pintei o
quarto da Joana de tons claros e transferi a sala para lá, onde afinal sempre
tinha sido, até ela ter adoecido.
Olho em volta, a
sala está bonita e alegre, como ela gostaria. Recosto-me no sofá com o
computador ao colo. Insiro o primeiro DVD, de vários, que um velho amigo se deu
ao trabalho de gravar com os filmes das antigas cassetes de vídeo.
O monitor
ilumina-se. Oiço a gargalhada cristalina da Joana. Ela aparece, subitamente,
rindo, na pueril inocência dos seus 3 anos.
Ali, vejo-a crescer.
Rindo. Às cavalitas do pai. Chapinhando nas ondas.
Agora, já tem 16
anos. É linda, saudável e feliz.... para sempre
- A VELHA -
Vestiu o casaco e pôs a mala ao ombro. Bufando,
irritada, olhou em volta.
A casa estava arrumada, mas, mais uma vez, tinha tido
que andar a correr. Odiava os domingos e as visitas ao lar.
- Raios partam a velha. Nunca mais morre. - resmungou
entredentes, ao mesmo tempo que fechava a porta com violência.
Entrou no carro, onde o marido a esperava, com maus
modos.
Então, vamos ou quê! - rosnou para este, que se
apressou a pôr o carro a trabalhar.
- Sempre a mesma coisa. - continuou . Todos os
domingos, em vez de irmos passear, vamos para aquele pardieiro, cheio de velhos
a cheirar a mijo.
O homem manteve-se silencioso, fitando a estrada.
- Sim, explica-me lá o que é que tua mãe está a fazer
neste mundo. A dar trabalho, é o que é. E, pior, a gastar o dinheiro que tanta
falta nos faz.
- Olha, agora é o André que precisa de um aparelho
para os dentes e o imprestável do teu genro continua desempregado. Lá vamos ter
que ser nós, outra vez, a pagar tudo. E tanto que eu precisava de uma placa
nova, esta está larga e já me faz mal.
E os cortinados do quarto. Já viste? Estão todos
podres. qualquer dia desfazem-se e caem aos bocados.
Ah, e não sei se já te disse, a Mónica quer tirar um
curso de design de moda, ou lá que é. Mas só há no privado.
Agora, diz-me lá tu, se o dinheiro que se está a
gastar no lar não teria mais utilidade se fosse gasto com os teus netos?
- Cala-te, mulher. - gritou António, já impaciente.
Calo-me? Isso é que era bom. Então eu que me tenho
esfalfado toda a vida a trabalhar. Eu que cuidei da tua mãe meses a fio,
enquanto a sonsa da tua irmã só aparecia de visita, sempre à pressa, sempre
ocupada. Não querias mais nada. Vê-se logo que me calo.
Olha, e para que saibas, a tua filha já deve uma
prestação da casa ao banco. - atirou
- Não deve. - contradisse António.
- Não deve?
- Não, eu já paguei.
- Ai pagaste! - E então onde foste buscar o dinheiro,
se me tinhas dito que este mês não sobrava nada, por causa do arranjo do carro?
- Fiz uns biscates
- Fizeste? Pois olha, devias fazer mais, ao domingo,
em vez de andares a gastar gasolina, de trás para frente.
Não sei porque a queres ver todos os domingos. Acho
que ela já nem te conhece.
- E, então, que queres que faça? Que a mate? -
inquiriu ele, já fora de si.
- Olha, a propósito, sabes que estão a discutir a
eutanásia no Parlamento? Dentro em breve vai sair a lei. E é para casos destes,
como a tua mãe. - rematou ela, ferinamente.
- Ó mulher, tu estarás doida! - exclamou atordoado.
Estava um dia solarengo. A maioria dos idosos
encontrava-se na sala, vendo televisão, conversando ou dormitando.
Carolina atravessou a sala sem olhar para eles.
Cumprimentou as funcionárias e dirigiu-se ao elevador, seguida, de perto, pelo
marido.
- Mãe. - chamou António, beijando a face
da idosa que, serenamente, dormia, na cama junto à janela.
Maria abriu os olhos e sorriu para o filho.
- És tu, João? - perguntou Maria, confundindo-o com o
pai.
- Não, mãe, sou eu, o António, o seu filho.
- Ah, que bom. Tinha tantas saudades tuas. A tua irmã
vem sempre à pressa. Coitada, tem muito trabalho e responsabilidades.
Eu já não estou cá a fazer nada. Deus Nosso Senhor
podia lembrar-se de mim. Só dou trabalho e já não tenho préstimo para nada. -
lamuriou a velhota.
- Não diga isso, mãe. Está cá muito bem e vai ver que
se vai pôr melhor e qualquer dia já vai conviver com as outras pessoas, lá em
baixo, na sala.
- Acho que não, meu filho. Daqui para a frente é
sempre para pior.
E tu não estejas a vir cá tantas vezes. Gastas
dinheiro e não aproveitas os domingos com a família.
- Ora, mãe, deixe-se disso. Venho cá, sim senhor
Pouco depois despediram-se. Carolina deu um beijo
rápido na bochecha da sogra e saiu, sem que tivesse aberto a boca, para dizer
fosse o que fosse, durante todo o tempo que lá estiveram.
Já no carro, Carolina voltou à carga.
- Estás a ver, eu é que tenho razão! A tua mãe também
acha que não está cá a fazer nada. Quando sair a lei, pergunta-lhe. De certeza
que ela assina logo o papel.
António não respondeu nada, mas o seu semblante estava
carregado de tristeza e impotência. Tantos problemas, tantas exigências. Tanta
falta de dinheiro.
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