Os Cadernos Maléficos


Naqueles tempos de obscurantismo, caminhavam, sorrateiramente, pelas tenebrosas vielas, sinistros homens de saias, na senda dos infiéis.
O mal reinava sobre a terra. O diabo,  traiçoeiro e à socapa, aproveitando-se das fraquezas humanas, conduzia os homens ao pecado. 
Dos seus púlpitos doirados, os iluminados pregavam contra as tentações demoníacas, perante os crentes temerosos ou temerários, conforme os casos.
E eis que, em grande alarido, os homens de saias, invadem o santuário. As gentes, em grande aflição, perguntavam-se que grave acontecimento teria levado a tal comoção.
Em surdina, a palavra, pecaminosa, espalhou-se, agitando as gentes, em ondas de fúria e raiva, "Os cadernos" .
- Rosa -  diziam uns.
- Azuis - apregoavam outros
De espadas em riste, que, atingidas pelo fulgor do sol, encandearam momentaneamente a multidão, os homens de saias, valentes, avançavam para a sua valorosa missão.
- Sem medo. - incitavam os iluminados.
- À carga - gritavam os guardiões.
- Acendam as fogueiras - rugiu o capitão-mor.
Os tambores rufavam, marcando o ritmo da marcha dos Sinistros, homens de saias.
Trémulo, o velho escriba, com a careca brilhante de suor, deixou escapar-se-lhe das mãos o caderno azul, que caiu com grande estrondo, próprio das coisas endemoinhadas.
A populaça, ululando, seguia correndo, logo atrás dos Sinistros, de foices e martelos em riste, não fosse o infame infiel escapar às mãos poderosas dos Sinistros.
O velho escriba agachou-se, defendendo-se, como pode, das espadeiradas e protegendo contra o peito o seu caderno cor-de-rosa.
Morte ao escriba - gritava a populaça, em grande alarido.
Dois Sinistros arrastaram o velho, pelo pedras das vielas, até à grande praça.
As fogueiras erguiam-se em labaredas, que dançavam ao sabor do vento, criando figuras fantasmagóricos nas paredes das casas, e impregnavam tudo e todos de forte odor a fumaça.
O carrasco chegou. O empalador já estava montado.
Os juízes, de semblantes graves, olharam o velho escriba com desprezo.
- Foste tu que publicaste os Cadernos Maléficos? Que tens a dizer em tua defesa? - rosnou o mais importante dos juízes.
- Excelência. Fui, sim, mas não foi por mal. Queria apenas ajudar a ensinar as crianças nas escolas e estava a tratar do meu negócio. Não sabia que era pecado, nem que os Cadernos, azuis e rosa, eram maléficos. 
- Não sabias? - perguntou, com um sorriso sardónico, a juíza mais nova. - Claro que sabias, querias dar-lhes a comer a maçã do pecado, para que descobrissem o seu sexo.
- Hum! - grunhiu o juiz mais velho, meio desinteressado.
- Que mais tens a dizer em tua defesa? - perguntou de novo o juiz principal.
- Poupai-me, Excelência, não voltarei a pecar.
- O teu crime não tem perdão. Morrerás por empalamento, hoje mesmo, nesta praça. - declarou o juiz principal, cuspindo para o chão.
O velho escriba foi levado, de novo, de rastos, pelos Sinistros, até ao empalador. Os seus gritos, primeiro de pânico e depois de dor, atroaram os ares.
Enquanto isso, outros Sinistros, sob o olhar vigilante do guardião-mor, atiraram com grande ímpeto e estrépito os  Maléficos Cadernos, azuis e rosa, para as fogueiras, as quais rejubilaram de fulgor.
A populaça aplaudia extasiada. 
Os juízes disfarçaram sorrisos de satisfação.
Os Sinistros salivavam,  excitados.
O guardião-mor saudou a multidão.
 O carrasco lavou as mãos.

Acerca da censura e da "Outra Santa Inquisição"



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