AS TÁBUAS

As Tábuas - Tríptico -  Pintor - Isidro Santos

Há alguns dias, um velho amigo e excelente pintor lançou um desafio aos amigos, facebookianos, para que escrevessem uma história acerca de um conjunto de três tábuas, por ele pintadas, as quais seriam, também, o prémio para o autor da melhor história.
Claro que eu fiz logo questão de responder a este desafio ou não fosse a escrita uma das minhas maiores paixões.
Ontem, foi o dia de nos encontrarmos todos no Cubículo, o seu atelier, para partilhar publicamente as histórias, as quais já tinham sido avaliadas por um júri, constituído pelo próprio pintor  e, se bem entendi, outras duas pessoas.
A concurso encontravam-se seis histórias, de seis diferentes autores. 
Ao todo, neste evento de fim de dia, éramos cerca de uma dúzia de pessoas, entre concorrentes, promotores e júri. 
Não, não era o evento artístico da semana. Não, não teve cobertura mediática e os diferentes escritos não foram objeto da crítica literária dos inteletuais, da nossa praça. Não, não houve flashs a encandear-nos, nem pousámos para a foto, envergando trajes dos costureiros da moda.
Foi, antes, um encontro de amigos, ainda que alguns de nós não nos conhecessemos e só tivéssemos em comum um amigo, o pintor,  e o facto de ter respondido ao seu desafio.
Mas, na verdade, aquelas quase duas horas de confraternização deixaram o gosto doce dos encontros de amigos e até tivemos direito a uma sessão explicativa da Terapia do Riso, dada pelo Carlos Silva, meu amigo e conterrâneo, o qual, na verdade, nos fez rir, libertando-nos dos pesos ou nuvens que, por acaso, nos tivessem seguido até ali.
Todas as histórias, mais longas, mais curtas ou, mesmo, curtíssimas revelavam um pouco a essência dos homens e a relação pessoal de cada um com os vermelhos, os laranjas, os azuis, os brancos, os castanhos e os cinzentos da vida.
Das seis histórias, três foram consideradas melhores, entre as quais se encontrava a minha. Estas últimas foram "baralhadas" e a escolha da melhor foi feita às cegas, de forma aleatória. 
Calhou-me a mim o primeiro prémio, mas havia prémios para todos, pinturas em tábuas, as Tábuas Honrosas, e, a mim, até me foi dada, também, uma dessas Tábuas, a qual, de certa forma, é a expressão da já longa história da nossa amizade, numa pintura que representa um lugar a que pertenço e de que muito gosto.


Tábua Honrosa I - Adail - Pintor - Isidro Santos


Obrigada, Isidro, pelo convívio, pela boa disposição e Terapia do Riso, pelo desafio, pelas Tábuas e, já agora, por ter tornado possível que eu recebesse o meu primeiro prémio literário, num concurso onde todos os participantes ganharam.

E, agora, vamos à minha história...

As Tábuas


Primeira Tábua

O homem encostou-se à traseira do jeep e perscrutou os céus de sobrolho franzido. A sua expressão carregou-se em sinal de preocupação. Nem uma nuvem se avistava. O sol, inclemente, cortava baixo e quente.
O verão já ia bem longo, tão longo que entrara pelo outono dentro, e, com o pouco que chovera todo o ano, dentro em breve, teria que comprar mais ração para o seu rebanho.
Bem, de nada valia estar ali parado a preocupar-se – pensou - O tempo não é coisa sobre a qual se tenha controlo.
Agarrou na saca e pô-la ao ombro, engolindo um gemido envergonhado. 
Noutro tempo, carregava uma em cada ombro, bem mais pesadas do que esta, sem quase lhes sentir o peso.
No momento em que o lamento, do portão do casão a abrir-se, lhe entrava pelos ouvidos, a lembrá-lo de que os gonzos precisavam de óleo, algo o fez estacar. 
A princípio não percebeu o que era. Pousou a saca e olhou para todos os lados. Um novo estalido, mais próximo, fê-lo virar a cabeça. Foi quando o viu, imenso, ávido e veloz, vindo na sua direção com um rugido sobrenatural.
Fugiu dali, correndo descontroladamente, sem saber que caminho tomar. O rio apareceu-lhe à frente, como uma bênção.
Lá, já se encontrava um grupo de homens e mulheres, seus vizinhos. 
Falavam todos aos mesmo tempo, assustados, sem saber o que fazer ou para onde se dirigir para escapar ao fogo.
Um ligou para os bombeiros, outros muniram-se de pás e baldes cheios de água para tentar aplacar a ira do monstro.
Sentiram-no passar, ali bem próximo, não lhes deixando mais marcas que algumas bolhas no corpo, tosse e dificuldade em respirar e as roupas e corpos tingidos de uma mistura de negro e cinza.
Por um momento, o silêncio cobriu a terra, como um manto feito de um misto de espanto, horror e incredulidade.
Bem próximo deles, a floresta transformara-se num mar de troncos carbonizados e fumegantes.

Segunda Tábua


O outono, o verdadeiro, chegara, finalmente, trazendo com ele o frio e amarelecendo as folhas, das poucas árvores sobreviventes, que pintavam a terra de tons laranja
O homem, parado à porta de casa, observava o espetáculo da natureza. Essa força incontrolável e rebelde que, qual fénix, renasce sempre das cinzas.
Pouco tinha para fazer. Depois das limpezas dos troncos e todas as espécies de materiais ardidos. Depois, da pintura da casa, que o monstro tisnara de todos os tons da tristeza. Depois da recolha dos corpos carbonizados e sem vida do seu rebanho. Depois de contabilizar todos os prejuízos, das ovelhas às árvores, passando pela horta, pelo pequeno pomar e pela criação. Depois de ajudar os vizinhos a reerguer, dos escombros, as suas habitações, vedações e outros pertences. Depois de homenagear os mortos ou visitar amigos e vizinhos no hospital, pouco lhe restava para fazer.
Ia mugir a vaca que, quase milagrosamente, escapara ao morticínio. Depois iria até à aldeia espairecer as ideias e ver se podia ajudar em alguma coisa.
Muitos, como ele, tinham perdido tudo, ou quase tudo. Tinham perdido o trabalho e investimento de uma vida. Tinham perdido o alento e a esperança.
A conversa, entre os que se encontravam à porta do café, morrera no mesmo tema em que morria todos os dias. Os seus rostos, esculpidos pelas inclemências do frio e do sol, deixavam transparecer um profundo desalento.
Francisco, o mais velho do grupo, o único que se encontrava sentado, por as suas frágeis e envelhecidas pernas já não suportarem o seu peso, pigarreou. Todos o olharam, expectantes, era sempre assim que iniciava uma conversa, como se procurasse coordenar as ideias ao mesmo tempo que aclarava a voz.
- Homens dum raio, deixem-se de lamentações e tristezas. Vocês estão vivos. Já outro tanto não posso dizer da minha família. Façam-se à vida. Nunca ninguém disse que isto aqui na terra era pera doce. – atirou o velho.
Os homens mudaram de posição e mexeram-se, com desconforto, como que envergonhados, e, despedindo-se, começaram a debandar.
Era fim de tarde. O sol já ia baixo e a aldeia foi-se esvaziando, envolta pela floresta moribunda que teimava em viver.

Terceira Tábua 


O homem acordou sobressaltado. Com os olhos bem abertos, no escuro do quarto adormecido, tentou perceber o que teria sido que o acordara.
Não se lembrava de ter sonhado com coisa alguma que o assustasse ou incomodasse. Na casa reinava o mais profundo silêncio, apenas maculado pela suave respiração da mulher deitada ao seu lado.
Tentou conciliar o sono, de novo, mas foi impossível. Parecia que não havia posição em que se sentisse confortável.
Levantou-se, vencido, e foi à cozinha para beber um copo de água. Talvez essa distração momentânea o fizesse regressar ao sono, no aconchego quente da sua cama.
O frio despertou-o, ainda mais. Já na cozinha, quando se preparava para deitar a água no copo, ficou momentaneamente cego, ao ser atingido por uma luz fulgurante que entrou pela janela. Quase de seguida, ribombou um estrondoso trovão e, poucos minutos depois, começou a cair uma violenta carga de água.
O som da água, caindo copiosamente, fê-lo sentir uma estranha felicidade. Já chovera, naquele inverno, mas fora coisa de pouca monta.
Talvez Deus se tivesse apiedado deles, pois, se tivesse chovido muito, as terras, secas, do longo verão, e sem árvores vivas para as segurarem, teriam descido as encostas, soterrando estradas e, quem sabe, casas e aldeias.
Voltou ao quarto, arrepiado. Deitou-se, aconchegando-se no corpo quente, adormecido, da mulher. O sono chegou de mansinho, calmamente, embalado pela chuva que caia imensa, lá fora, fustigando as janelas ao sabor do vento.
O dia amanheceu escuro, carregado de truculentas nuvens cinzentas. A chuva ainda não parara. Era como se, subitamente, do céu caíssem todas as lágrimas que tinham ficado retidas nos corações dos homens, naquele longo ano de seca, de fogo e de morte.
O homem saiu para a rua, quase sem se proteger da chuva. Afinal, esta era abençoada. Vinha saciar a sede das árvores, culturas e sementeiras. Vinha fechar as feridas que a terra abrira, cansada e ávida. Vinha lavar as casas, os corpos e as almas dos homens.
Olhando o horizonte, o homem divisou a esperança, lá ao fundo, no topo da serra, onde a água dera lugar à brancura da neve, repousava o sol, por entre as negras nuvens.
Era tempo de se erguer e começar tudo de novo.

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