EM PERSPETIVA




Aproveitei o fim-de-semana para dormir até mais tarde. O sol já vai alto e brilha forte e intensamente. 
Sento-me, à sombra, num dos bancos jardim, "almofadado" a tijoleira,  e sozinha, apenas com a companhia da minha cadela que, ao sol, se rebola na terra com satisfação, tomo, em silêncio, o pequeno-almoço, perdida nos meus pensamentos.
A floresta em miniatura, de arbustos altos e flores, no canteiro à minha frente, forma um círculo imperfeito, afunilando a perspetiva.

Ísis


Este é um jardim de memórias ou não fosse ele o jardim da Casa das Memórias.
Este é o jardim que me viu crescer e tornar adulta. O jardim de muitas das minhas brincadeiras de criança; o jardim em que fiz a festa de batizado do meu filho; o jardim da primeira festa em que reuni a minha família com a minha nova família. O  jardim que foi, durante longos períodos, o reino da minha cadela Mini. Grande futebolista de enorme coração. 

Mini


Lá ao fundo, há muitos anos,  era o galinheiro, onde as galinhas passavam os dias debicando o chão e cacarejando. À noite, recolhiam à capoeira. Acomodavam-se no poleiro, encostadas umas às outras, para dormir, afastadas do chão e dos seus perigos.
Todos os dias, de manhã, lá ia a Custódia levar-lhes a comida e elas corriam como doidas à espera do seu quinhão. Em troca davam-lhe os seus brancos e saborosos ovos. 
As recordações, ou os sentimentos que estas me trazem, transportam-me de etapa em etapa, de ciclo em ciclo.
A vida é feita de momentos. Uns alegres, outros tristes; uns de enorme ansiedade, preocupação ou tensão, outros de grande energia, motivação ou leveza, outros, ainda, de imensa e intensa paixão, os quais se contrapõem aos de calmaria ou inércia.
Tudo se transforma, mas, de alguma forma, tudo permanece. 
Perdemos, ao longo da vida, pessoas que amamos, sonhos nunca concretizados, inocência ou juventude, empregos, oportunidades ou bem materiais. Mas, por mais que os percamos, permanecem vivos dentro de nós, nesse lugar fantástico que é o nosso cérebro, o qual guarda, de forma não aleatória, as nossas memórias.
Por essa razão, conseguimos recordar, como se tivesse acontecido ontem, o nascimento dos nossos filhos ou o maior susto que apanhámos com eles; o nosso primeiro amor ou o nosso primeiro beijo; as maiores humilhações que sentimos ou todos aqueles que amámos. 
Mas, há momentos, como este, em que o tempo parece parar e, numa perspetiva afunilada, encontramos o foco. O foco dos nossos objetivos,  desejos, sonhos ou ambições; o foco das nossas tristezas, dores ou vitimizações; o foco das nossas preocupações, falhas, erros ou medos; o foco daquilo que realmente fomos ou fizemos, daquilo que realmente somos, queremos e estamos dispostos a fazer ou arriscar.
Este ciclo ou etapa, ainda que vibrante e apaixonante, não tem sido fácil. Pelo contrário, tem sido trabalhoso, exigente, duro. 
O inesperado apanhou-me de surpresa, tirando-me o folgo, como um soco no estômago, o projetado ou delineado entortou-se, obrigando-me, ou obrigando-nos, a redefinir prioridades, a mudar de caminho, a alterar projetos, a redefinir objetivos.
Parte das nossas vidas, por vezes, parece cristalizar, mas, na verdade, está sempre em contínua transformação.  
Nunca estamos preparados para as mudanças abruptas, para os imprevistos ou mesmo para aquilo que podemos prever, mas que nunca estaremos preparados para que aconteça.
Ocasionalmente ou, mesmo, mais vezes do que acharíamos razoável,  cometemos erros de avaliação ou perdemos o controlo daquilo que pensávamos, ingenuamente, ser capazes de controlar.
Na verdade, há bem poucas coisas na vida sobre as quais tenhamos verdadeiro controlo.
Olho através do circulo imperfeito da floresta em miniatura que me enche os olhos. Sinto que a natureza é perfeita, na sua própria imperfeição, tal como as nossas vidas e nós próprios o somos.
Inspiro profundamente, ganho um novo alento. Está um dia morno, de sol radioso e as cores da vida chamam por mim. 
Ergo-me para uma nova etapa. Afinal, tudo passa, tudo se transforma e tudo permanece.


Este jardim é a primeira coisa que vejo, logo de manhã,  ao abrir a janela do meu quarto, nos fins-de-semana que vou a "casa".
E, este fim-de-semana, não foi diferente.
Abro a janela do meu quarto, a luz intensa, de um sol vaidoso, ofusca-me, por um momento.
Vibrantes de vida, as cores inundam-me os olhos.
São as flores do meu jardim que se erguem, entre o verde das ramagens e o branco luminoso das paredes, humildes na simplicidade, majestosas na beleza, em homenagem ao criador.

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