A CASTELÃ

No ano 2000, já lá vão quase 20 anos,  foi quando pensei, pela primeira vez, recuperar e remodelar a minha casa, no Alentejo.
A Margarida, nas suas palavras, uma loira, gordinha, já a ficar fora do prazo, foi a arquiteta que escolhi para levar a cabo tal projeto.
Encantada, andou por toda a casa, imaginando as alterações e dando-me ideias.
A certa altura, abrimos as portadas do palheiro e aquela divisão ampla, há muito sem utilização, encheu-se de luz. A Margarida, com um olhar sonhador, disse-me qualquer coisa como: - Esta casa é um castelo e a sua dona uma verdadeira Castelã. É uma pena que não queira fazer dela um fantástico turismo de habitação.
Sorri-lhe. Havia demasiadas razões para não querer fazer da minha casa um turismo de habitação, mas, de facto, era necessário encontrar alguma forma de a tornar sustentável, pois uma casa de grandes dimensões, com mais de 200 anos,  não se coaduna com o modo de vida, condicionalismos e circunstância dos tempos atuais.
Mas o homem põe e Deus dispõe. Algumas alterações na minha vida profissional acabaram por me levar por outros caminhos, pelo que o meu projeto foi adiado sine die.

Foi em 2015 que voltei a olhar para o projeto realizado pela Margarida. Infelizmente, ela partira, prematuramente, e já não me poderia apoiar na sua realização, mas a sua memória acompanhou-me durante todo o processo, ainda que  me tenha afastado muito do projeto por ela idealizado.
Neste verão, fiquei, durante alguns dias, completamente sozinha, naquela que gosto de chamar Casa das Memórias, agora, totalmente recuperada.
Aquela é a casa a que pertenço, onde me sinto acolhida, confortável, acarinhada. Por todo o lado, as memórias permanecem vivas e tudo me é familiar, mas as noites, silenciosas, convidavam à reflexão.
As palavras da Margarida ressoaram dentro de mim "esta casa é uma castelo e a sua dona uma verdadeira Castelã",
Olhei em volta, senti orgulho e satisfação pela obra realizada. Agora, há novos espaços, novas cores e até novos cheiros, mas, de alguma forma, tudo permanece igual, nos móveis, quadros e objetos, que  que contam histórias, nas paredes, que protegem e abrigam e que são os guardiões das memórias, dos sentimentos, das emoções.
Senti que podia ficar ali para sempre e iniciar uma nova etapa, embora algo solitária. 
Mas, de novo, as palavras da Margarida se fizeram "ouvir". A Casa das Memórias parecia inquieta, questionando o meu futuro.
De certa forma, uma Castelã é sempre alguém solitário que vive afastado ou protegido do mundo. O seu futuro está traçado e ainda que seja a dona de um "castelo", é também a sua prisioneira.
No silêncio das noites, percebi que ainda não era chegado o tempo de voltar definitivamente. Muita coisa ainda estava por cumprir, antes do regresso.
A Casa ficou serena, como que aprovando a minha decisão. Ela estará sempre ali, aguardando os meus regressos. 
No dia da partida, com as lágrimas a brincarem nos meus olhos, foi difícil colocar tudo no lugar, fechar as janelas e deixá-la ali, sozinha, como que adormecida, aguardando por mim, pacientemente. 
Parei na sala de entrada, olhei os que já partiram, mas que, de certa forma, permanecem bem vivos. Senti que me sorriam com aprovação, garantido-me que estarão sempre lá para me receber, em cada regresso, até que chegue o tempo em que voltarei, para sempre, para cumprir esse futuro que ainda não é agora.
Há que cumprir o futuro. Há que aguardar o tempo. Há que dar corpo e alma aos projetos. Há que escolher. Há que deixar-se ir. Há que amar.
Ah, sim, há que amar. Afinal, o amor é a essência e a força de que são feitos os  pilares da Casa das Memórias. 
Que outro conselho me poderia ela dar que não fosse o de escolher o amor?           
               

Comentários