O DIÁRIO DO SILÊNCIO - Parte II

E, então, correu tudo como previsto....



Depois de aguardar, quase duas horas e meia, na sala de espera, praticamente vazia, do Serviço de Internamento de Otorrinolaringologia, do Hospital de Santa Maria, sentada numa cadeira de sumaplástico que quase me moldou de novo o "assento" e onde a única distração era este varandim iluminado, com vista para o jardim da fantasia (painel de azulejos), por fim, lá me chamaram.
A Enfermeira Manuela é uma senhora pequenina, com um ar eficiente e simpático. Senti que, subitamente, tinha entrado num mundo paralelo, pois esta Enfermeira levou-me a conhecer todo o serviço, incluindo a sala de recobro, para onde eu iria após a cirurgia.
Senti-me num hospital de 5 estrelas. 
Na verdade, por mais problemas que o Serviço Nacional de Saúde tenha, a maioria deles originada pela má gestão governativa, o que faz a diferença, o que dá qualidade são as pessoas. 
Pois é, senti-me num hospital 5 estrelas e estava num hospital 5 estrelas. Só me resta ter a esperança de que as más políticas e a corrupção não destruam um dos melhores, se não o melhor hospital do país.
Por mais medo que eu tenha das anestesias ou dos erros médicos, ali, naquele hospital, respira-se competência e, a maioria das vezes, humanidade, por parte dos profissionais que lá trabalham.
Em seguida passámos para os preparativos, os quais me foram tranquilizando interiormente, porque ali se respira tranquilidade.
Um pouco depois, chegou uma nova Enfermeira e informou-me de  que seria ela que ficaria no serviço até ao final do dia. Muito pressurosa, colocou uma fita adesiva por cima dos botões da casaco de pijama, pois considerou que eu estava descomposta, em virtude dos pequenos espaços entre os botões permitirem uma visão, quiça escabrosa, de diminutas partes da pele do meu peito e abdómen.
É uma Enfermeira com um ar um pouco hirto e asséptico que me fez imediatamente pensar em fanáticos religiosos, mas é, também, um ser humano especial que me tocou o coração, pela competência, pela humanidade, pela forma como explica as situações. 
Enfim, chegou a hora de adormecer, eu não via a hora de tal acontecer, a espera é sempre angustiante.
Um pouco doloroso e igualmente angustiante foi o acordar. Parece que a anestesia teve sobre mim um efeito especial de quebrar filtros e controlos. Durante mais de uma hora, após a cirurgia, as lágrimas escorreram-me copiosamente pela cara abaixo.
Por momentos, esqueci dores, mágoas e irritações, de longa data, e o controlo que procuro ter sobre tudo o que se passa à minha volta. Deixei-me sentir, apenas, indefesa, sem barreiras e sem controlo. Querendo, somente, ser acarinhada, protegida, amada.
Acordei mais tarde, no mesmo comprimento de onda em que passei as férias, deprimida, stressada, irritada. 
Foram, seguramente, as piores férias da minha vida. Houve de tudo um pouco, entre outras coisas mais, houve doenças, crise alérgica de falta de ar, a algo não identificado, ainda, mas residente na minha Casa das Memórias, que me pôs a cortisona, antibiótico e anti-histamínico; problemas laborais; avarias de máquinas, partes da casa atamancadas, para recuperação e arranjo, num futuro próximo, e mesmo obras inesperadas; pouca praia, mau tempo e os contratempos de um processo, que se arrasta há já bastante tempo, relativo ao destaque de parte da casa.
Entre Câmaras, Finanças e Conservatórias, todos sabemos como os diferentes procedimentos nos podem tirar do sério.
Ainda não está terminado, mas não posso deixar de mencionar, aqui, a boa-vontade das pessoas que, nesta fase pré-final, me atenderam na Câmara e nas Finanças, de Santiago do Cacém, pois sem essa boa-vontade tudo teria sido ainda mais difícil. 
Mesmo assim, ainda faltam as especialidades, não tem estado fácil, nem sei para que tipo de dificuldades me devo preparar quando o projeto der entrada nos Serviço de Obras da Câmara, e falta também a ida à Conservatória, que fechou durante uma semana, em virtude da greve, como se de propósito para frustrar os meus objetivos.
O meu segundo acordar, ainda que diferente na disposição, foi igualmente consciente. Sabia que não podia falar e não falei. É estranho, mas fazível. 
Quando precisei de chamar, bati nas grades da cama e quando me transportaram do recobro para a enfermaria, no piso 5, com paragem no cacifo para recolher os meus pertences, dei impulso à cadeira de rodas para mostrar o que pretendia.
Ninguém me tinha arranjado ainda nada onde escrever, pelo que sem poder falar a única forma de comunicar era por gestos.
A minha Enfermeira asséptica despediu-se de mim calorosamente, dizendo-me que tinha gostado muito de me conhecer. Despedi-me com um beijinho e enorme gratidão. 
Guardo-a no meu coração. Esteve ao meu lado, no meu acordar choroso e no meu acordar irritado, e foi sempre fantástica e irrepreensível, técnica e humanamente. 
A primeira noite do silêncio foi diurética, parece que as anestesias têm esse efeito sobre mim, pelo que muito pouco descansada. Tive direito a um quarto só para mim, porque não havia camas disponíveis nos outros quartos da enfermaria.
As enfermeiras e auxiliares, deste piso, olhavam-me um pouco como um bicho estranho. Não é muito vulgar as pessoas não poderem comunicar por palavras e elas pareciam ter alguma resistência a esse facto.
Sinceramente, não sei se eram antipáticas. Talvez a antipática fosse eu, pois, para além do cansaço e do esforço para me manter concentrada e não falar, aquele conjunto de sensações ou disposições, num mix de depressão, stress e irritação, encontraram o seu ponto mais alto, quando passei para a enfermaria.
Penso que nunca tive tanta certeza, como agora, de que a vida, o mundo, o universo ou Deus, às vezes, nos querem transmitir mensagens. 
Ainda em férias e imediatamente a seguir a ter batido com a cara na porta fechada da Conservatória, para greve,  recebi o telefonema do hospital a informar-me de que a minha cirurgia estava marcada para dia 20 de agosto, ou seja, um dia após o meu regresso ao trabalho.
Hum, parecia que a vida não queria dar-me folga. Mas aceitei. Não valia a pena adiar, nem tentar contrariar o verão da minha insatisfação.
Então, o primeiro dia do silêncio começou numa sala de espera onde fiquei mais de hora e meia sozinha, continuou no recobro e estendeu-se pela noite dentro num quarto onde fiquei sozinha, como se de um hospital particular se tratasse.
A mensagem parece ser, silencia a tua mente, acalma as tuas emoções. 
Mas, não é fácil fazer silêncio, principalmente silêncio interior, quando tudo dentro de nós está em ebulição, quando temos tantas coisas pendentes para tratar, quando tudo parece escapar ao nosso controlo, afastar-se do nossos objetivos, frustrar os nossos sonhos mais acarinhados.
Então, após a saída, em andamento rápido, do Hospital, ainda da parte da manhã, passei o dia num enorme desassossego e ruído mental, respondendo a mensagens e sms, tratando do que deixei pendente e era possível tentar resolver ou, pelo menos, dar continuidade. até atingir um nível de cansaço próximo da exaustão, que  só não sinto completamente em virtude da grande quantidade de adrenalina que o meu stress e irritação têm feito libertar.
Mas o cansaço, está cá. A urgente necessidade de silêncio e de acalmar as emoções, também. E a mensagem da Vida, do Universo ou de Deus também.
Mas é mais difícil silenciar a mente do que a boca. É mais difícil acalmar um coração fervilhando de emoções do que baixar uma tensão elevada.
Parto, agora, para a reta final do meu verdadeiro primeiro de quatro dias de silêncio.
A noite costuma ser boa conselheira, mas é também ela que transporta os fantasmas mais negros da depressão. Espero que me traga, então, bons conselhos e silêncio, ao invés de fantasmas.
Silêncio da mente, silêncio das emoções, silêncio da voz. E silêncio da minha mania de tentar controlar tudo o que se passa no mundo à minha volta.
Para quê? Na verdade, por mais que eu queira, há tanto que me escapa das mãos. Mas, eu só sei ser eu, portanto tudo quanto possa fazer pelos outros, ou por mim, para levar tudo a bom porto, farei até que as minhas mãos caiam inertes de impotência.
Mas, por uma vez, e nestes dias que me restam, vou tentar silenciar tudo e entregar o "meu mundo" nas mãos da Vida, do Universo ou de Deus. Será uma experiência nova e, seguramente, o maior desafio que alguma vez farei a mim própria. Para já, tive todas as "ajudas", mas não comecei bem. 
É estranho e difícil irmos contra a nossa própria natureza ou contra aquilo em que a transformamos, através dos nossos hábitos, atitudes e comportamentos mais interiorizados.
Vou debruçar-me no meu varandim e espreitar os seres mágicos do jardim da fantasia. Depois, enroscar-me-ei em confortável cadeira, envolta na maciez da manta cor-de-rosa e lerei o Livro de São Brás, até que o sono me embale para o país da quietude, onde a mente encontra a paz, o coração o calor e a boca o silêncio.




Comentários

  1. Tu dia 20, eu dia 14... Passei por algo idêntico, só que podia falar, mas não podia andar... Parecido mas não igual. Fui operada no hospital de Cascais, onde não grassa (pelo menos desta vez) o carinho ou a macieza de que tu falas... Graças a Deus tinha voz, caso contrário só teria bebido ou comido algo quando chegasse em casa, e a mim as anestesias também têm um efeito diurético igual ao que tu sentiste... o pior era que a arrastadeira chegava meia hora depois. Só com muita força de vontade não houve na minha cama várias inundações. E não tive a tua sorte de estar sózinha num quarto, tinha por única companhia uma senhora que fingiu, durante mais de 24 horas consecutivas, falar ao telefone, aos berros, com toda a gente de que se lembrava, ou inventava... Como vês, a minha operação foi uma maravilha!! O melhor foi, quando acordei no recobro, sentir que estava viva, que mais uma vez tinha vencido uma anestesia geral... Grande mulher, pensei eu. Agora em casa, não devo estar melhor que tu... Já deixei a cadeira de rodas, já deixei o andarilho... Mas as minhas amigas canadianas acompanham-me da cama para a casa de banho, da cama para a saleta e irão acompanhar-me por muito tempo... Fui ao hospital na passada segunda feira e irei na próxima... E sabes? É uma festa, só de pensar que vou sair de casa, que vou ver gente. Pois é, conheces alguém que goste de ir ao hospital???? Amiga, põe-te bem, gosto de te ouvir 😘😘😘🌺

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    1. Vais ouvir. Vou ver como consigo fazer. Mas, provavelmente, na terça-feira, depois da minha consulta, passo aí por tua casa. É da parte da manhã, se for preciso das-me almoço, ahahahha. Põe-te boa. Jinhos

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