O DIÁRIO DO SILÊNCIO - Parte III

Cá estou eu de volta para escrever mais uma página do meu Diário do Silêncio. 


Amazónia

Ainda que a boca se silencie, a mente parece não ter jeito para obedecer a esses comandos, ainda menos quando atingimos elevados estados de stress, frustração, irritação ou depressão. 
Assim, a cabeça não me tem dado grandes tréguas. 
Por um lado, as "minhas coisas", que nem descurei, nem me deram folga,  nem, aparentemente, se conseguem resolver sem primeiro serem uma fonte inesgotável de obstáculos e contratempos, parecem determinadas a manter-se no centro das atenções.
Por outro, deram-se diversos acontecimentos, nacionais e internacionais, que têm mexido comigo. De entre estes destaco, a nível internacional, os incêndios catastróficos na Amazónia, um pulmão do mundo demasiado exposto à ganância dos homens, e, a nível nacional, o recente Despacho n.º 7247/2019, o qual suporta e branqueia a novel  ideologia de género, a qual, por sua vez, se baseia em pseudo-investigações científicas, sem qualquer suporte científico, em pós-verdades sem fundamento, em radicalismos e em politicamente corretos, impossíveis de gramar, com a chancela pretensamente insofismável do "progresso civilizacional" e, mais  grave, através de uma suposta garantia do direito à diferença e à escolha do género, de crianças e jovens, que acaba por se transformar no factor legal destabilizador do crescimento e desenvolvimento harmonioso, físico e psicológico, de crianças e jovens, expondo-os a todo o tipo de depravações, manipulações e pressões, ao nível das suas tendências ou opções sexuais, muitas vezes, numa altura em que nem as próprias crianças as valorizam, nem pretendem definir-se.
Mas, na verdade, as nossas mentes são fantásticas e conseguem reter, analisar, destacar e processar uma enorme quantidade de informação ao mesmo tempo, separando-a por temas e relevância, filtrando-a pelo grau de influência, proximidade, carga emocional, perigosidade ou bem-estar que proporcionam à nossa vida.
A memória, ou memórias, é, talvez, uma das funções mais fascinantes do nosso cérebro. É ela que nos permite reter informação, reviver momentos, recordar acontecimentos e pessoas,  tornando o tempo absolutamente relativo, pois a nitidez da memória não tem a ver com quão próxima ou longínqua esta é, mas, sim, com a forma e intensidade com que nos tocou emocional, intelectual ou psicologicamente. 
É ela, também, que nos permite escrever um Diário, andando para a frente e para trás no tempo, conforme nos vamos recordando dos acontecimentos ou estes ganham nova relevância.
É por isso que hoje me apetece falar no Dr. António.  
Quem é o Dr. António? 
Bem, o Dr. António é o cirurgião que me operou e que é chamado desta forma, entre o carinhoso, íntimo e respeitoso, pelo pessoal do Serviço de Otorrinolaringologia, do Hospital de Santa Maria. 
O Dr. António é um rapaz novo, de sorriso afável e mãos hábeis e leves que conheci há cerca de dois meses, quando fui pela primeira vez à consulta de otorrinolaringologia, por indicação do meu médico de família, em virtude da mudança e inconstância do timbre da minha voz, que já se manifestava desde há quatro anos.
A consulta não era, portanto, de rotina, mas para eventual diagnóstico dos motivos dessa alteração vocal.
Depois de espreitar os meus ouvidos, os quais libertou da cera rapidamente e de forma indolor, e de investigar as minhas narinas, que pareceram não lhe despertar grande interesse, levantou-se e foi buscar um objeto que, à primeira vista, me pareceu uma bomba para encher pneus de bicicletas, mas, obviamente, o tal objeto era uma coisa bem diferente que percebi seria usada em mim, pelo que lhe pedi para me explicar o que ia fazer com aquilo, ainda assim eu não tivesse uma reação estranha.  
O objeto era um endoscópio, com uma câmara na ponta,  ligado a um monitor e com ele pode  ver-se e filmar a laringe, as cordas vocais e provavelmente outros órgãos do sistema respiratório.
Naquele momento, enquanto o objeto assustador espreitava para dentro da minha laringe, impedido-me de dizer palavra, ouvi, espantada, as seguintes palavras da boca do Dr. António: "Ai que engraçado."
Cogitei, com os meus botões, o que poderia ter de engraçado a minha laringe e logo que me vi livre da prisão da língua e do curioso objeto e após ter sido informada, pelo Dr. António, de que tinha um polipo na corda vocal direita, perguntei-lhe o que tinha este de tão engraçado, ao que o médico me respondeu que era a sua  grande dimensão.
Seguidamente, informou-me que a indicação para aquela hilariante excrescência era ser sumariamente excisada.
Enfim, ultimamente, os médicos parecem estar apostados em extirpar partes de mim. Em maio foi a vesícula, em agosto um polipo, será que até ao final do ano ainda irão encontrar mais alguma coisa para escortinhar?  
Já relembrei o meu médico de família de que ainda não estou reformada, pelo que ainda não pratico aquele desporto de andar a correr de médico em médico, até porque sempre fugi deles como do demónio, pois bem bastaram todos os anos em que não me consegui esquivar, por ter tido que acompanhar familiares e amigos nas suas muitas idas ao médico, internamentos hospitalares, cirurgias ou horas esquecidas nas urgências hospitalares.
Mas, aparentemente, ninguém faz caso do que eu digo e insistem em querer que eu fique linda, fresca, jovem e fofa. 
Quem sabe, talvez venha aí uma grande etapa da minha vida para a qual tenho que estar convenientemente ataviada.
Como podem ver, silêncio é coisa que não há por aqui, ainda que eu não fale, e me tenha adaptado muito bem a isso, a minha cabeça está mais ruidosa do que nunca, tanto que pela segunda noite consecutiva mal consegui dormir.

Comentários